https://drive.google.com/file/d/1b5ToSVnj_4W2kgzZauj0bvd4Q7miiMQS/view
segunda-feira, 23 de maio de 2022
terça-feira, 23 de junho de 2020
quinta-feira, 16 de agosto de 2018
Universos de Bispo do Rosário e Vitória Basaia compartilham Galeria do Sesc a partir desta 4ª
“O Grande Veleiro” e “Arqueologia dos Meus Mares” terão visitação gratuita até o dia 28 de outubro
A possibilidade de criar a partir de qualquer matéria e a inerência de “vida” e “obra” unem duas expressivas personalidades da arte contemporânea brasileira em novas exposições. O sergipano, eternizado pelo misticismo de sua figura, Arthur Bispo do Rosário, e a anfitriã já mato-grossense, Vitória Basaia, dividem a Galeria do Sesc Arsenal, a partir das 19 horas, nesta quarta-feira (15).
Resultado da parceria entre Sesc e Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea (mBrac), O Grande Veleiro chega a Cuiabá como convide ao público a interagir com diversos elementos que constituem a poética do Bispo do Rosário, artista de reconhecimento nacional e internacional. Arqueologia dos Meus Mares, da mesma forma, revisita as várias “fases” de Vitória Basaia, em um compilado de obras reinventadas, em formato de instalação.
Dois passeios arqueológicos por universos inquietos, em diferentes direções, explica Basaia. A pintora, gravurista, conceitualista e escultora foi a artista local convidada a interagir com a exposição em itinerância pelo país – diálogo este, evidenciado pela linguagem.
“Existe uma ligação que é a possibilidade de criar com qualquer matéria. Acredito que ele também tenha um pé no Manoel de Barros, porque brinca com uma ludicidade, mudando palavras e dando outros sentidos a um objeto”, afirma Basaia. “Fiquei muito satisfeita, pois tenho o Bispo como um dos maiores artistas brasileiros”, complementa.
“O Grande Veleiro” e Bispo do Rosário
Artur Bispo do Rosário, natural de Japaratuba (SE), é considerado um dos mais importantes artistas contemporâneos do Brasil, mesmo recusando o “rótulo”. Considerado louco por alguns e gênio por outros, sua produção durou 50 anos dentro da Colônia Juliano Moreira já foi apresentada em renomadas bienais e sua figura viabilizou discussões sobre arte e loucura, identidade e territórios.
O Grande Veleiro levará o público da exposição a vivenciar o universo do Bispo do Rosário por meio de uma mostra interativa e educativa de objetos que representam seu mundo em miniaturas. São colagens, instalações, tapeçarias, bordados, estandartes, com destaque para o “Manto da Apresentação”, um emaranhado de pequenos símbolos, crucifixos, ringue de box e nomes de mulheres.
“Arqueologia dos Meus Mares” e Vitória Basaia
Vitória Basaia é jornalista e artista plástica nascida no Rio de Janeiro, radicada em Mato Grosso, desde 1981. Entre temáticas variadas, a artista cria formas que evidenciam aspectos da poética feminina, realizadas a partir da materiais cotidianos e pigmentos naturais, reciclando e resinificando rejeitos como madeiras, latas e plásticos, desde 1985.
Sua casa, considerada um museu de suas obras, é uma grande instalação em constante mudanças que expressa tanto seus processos criativos, quanto seu modo de viver.
Da mesma forma, em Arqueologia dos Meus Mares, segundo a artista, serão muitos objetos espalhados pelo e pendurados no teto. Para simbolizar esse passeio a junção de fases, uma enorme colcha de retalhos de telas de Vitória Basaia, que poderão ser vestidas pelo público que poderá interagir com as obras.
As exposições têm classificação livre e são abertas à visitação até o dia 28 de outubro. De terça a sábado, das 13h às 23h, e nos domingos e feriados, das 15h às 21h. Confira algumas peças que compõe a instalação de Basaia:
https://www.olivre.com.br/universos-de-bispo-do-rosario-e-vitoria-basaia-compartilham-galeria-do-sesc-a-partir-desta-4a/
https://www.olivre.com.br/universos-de-bispo-do-rosario-e-vitoria-basaia-compartilham-galeria-do-sesc-a-partir-desta-4a/
terça-feira, 10 de julho de 2018
segunda-feira, 9 de julho de 2018
quarta-feira, 4 de maio de 2016
segunda-feira, 19 de março de 2012
De mulher aos homens que pari
Estamos em Março mês em que se comemora e rememora o ser mulher, me penso a procura do que me faz diferente, poderosa em ser feminino ser. Me descubro útero de desova de um grande tesouro... Filhos! E a eles que vou me dizer.
No guardo da barriga éramos um só gestando o tempo; na morna espera do seu sair para a vida. Já ali, compartilhávamos sonhos de eu ser você e você ser eu. De quando em vez você mudava de posição; como que de birra batia os pés contra meu ventre avisando: Ei! Eu sou eu apenas eu!
Eis que em parto me parto por ti que se fez luz para iluminar caminhos. Na rosada bochecha um sorriso carente de dentes e mordes apenas um rasgo de boca luz para dizer, sou o amor.
Hoje quando me aconchego em posição fetal, te vejo e me revejo no útero de mim exposto na barriga do mundo fazendo da vida o aprendizado do ser amor, no dar e receber. Procriastes crias e em suas crias vejo o reflexo do seu ser. Quanto a mim, ensinou-me que do parto que me parti me multipliquei em ti. No afago de tuas crias, não minhas, não tuas: Do mundo. Me rendo a graça divina de ser mulher e poder mãe ser.
Alguns dirão – que texto piegas, ultrapassado, banal, chinfrim – mas não tem nada não, pois esta é a minha verdade; nunca queimei o sutian que aparou os peitos que amamentaram as vidas de minha vida.
Sou uma mulher atuante politicamente; uma profissional respeitada e realizada nas áreas em que atuo, mas nada me é mais gratificante do ser mulher do que ter tido a oportunidade de gerar, criar e participar da vida dos homens que pari. E a eles peço: Quando a memória nossa for apenas o silencio da lembrança, façam um pacto com a vida de que tudo que vivemos adube as próximas gerações de mim, de ti e, do amor pela humanidade.
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Vitória Basaia
Jornalista, Artista plástica
Arte educadora
Produtora Cultural
Mãe, Avó e Bisavó de carteirinha.
sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012
Cora Coralina de mim
Hoje eu vi Cora Coralina a velha eterna menina de Goiás, ao som de serenata “minh’alma esperava por ti”, como um relicário; em um Doc lá estava ela “levaram o ouro, deixaram as pedras e entre elas eu renasci”.
Me recordo como se fosse hoje, na época trabalhava no Correio Várzea Grandense, que até então era um semanário; o que nos dava oportunidade de elaborar pautas com tempo de escrever folgadamente e com mais cuidado o tema a ser dissertado.
Na primeira semana de Março de 1985 havia eu comprado o livro de Cora para presentear minha sogra que adorava declamar seus poemas. Li o livro, fiquei fascinada. Ali decidi que esta seria minha pauta para o dia da Mulher. Me adentrei na pesquisa, quanto mais conhecia Cora me sentia incapaz de escrever fazendo jus a ela; tudo que escrevia pensava que estava aquém do que era merecido dizer de tamanha Mulher. Fui enrolando até que se passou o Dia da Mulher. Enfim na primeira semana de Abril de 1985 o texto ficou pronto. No dia 10 de Abril ele foi publicado. Coincidentemente no dia em que ela faleceu. Chorei de emoção pela perca e frustração porque tinha desejo que ela o lesse. Não sabia se ela se recordava de mim, mas eu a conheci quando criança, meu pai adorava os doces que ela fazia.
Todas as vezes que íamos a Goiás Velho, nós a visitávamos para o doce e uma mão de prosa. Hoje vendo o Doc me deu uma saudade danada de mim, a quanto tempo não escrevo, não me digo à alguém. Me repenso, a arte se diz por mim. Hoje penso entender o que Cora queria dizer “levaram o ouro” (sua juventude) deixaram as pedras” (a maturidade) e entre elas eu renasci “a arte”
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Vitória Basaia
quinta-feira, 7 de julho de 2011
Textos Curtos
Ana Miranda
Vitória, uma grande artista! Sua obra é tão intensa quanto Gandhi ou Picasso, a mesma volúpia e amor a arte.
* Ana Miranda é escritora, autora do romance Boca do Inferno, entre outros livros.
Mariza Bertoli,
Vitória, que universo fantástico! O que me comove, de fato, é sentir em toda essa diversidade plástica, uma artista coerente e forte, mergulhada na noite do mundo. Obrigado por essa co-moção, Um abraço forte!
* Mariza Bertoli é produtora, crítica de artes e doutora em Estudos Latino Americanos Fundamentos e Crítica pela Universidade de São Paulo. Atua principalmente nos temas relacionadas à Arte Latino-Americana Contemporânea, Nível Mítico, Tema dos Contrários, Modo Simbólico, Imaginário e Regimes de Imagem.
Marcus Lontra
“...em Vitória Basaia a paisagem “é” a obra: a natureza aqui se revela em seu lado ancestral através das lendas, dos mitos da fecundidade e da transformação onde todo material é apropriado e acrescido de um forte valor poético e confessional que faz da arte e da vida parceiras inseparáveis”
* Marcus de Lontra Costa é crítico de arte, curador independente e Secretário Municipal de Cultura de Nova Iguaçu – RJ.
Texto produzido em Agosto de 2004
Maria Helena Kuhner
Vitória, você me fez ver porque a ligação natureza-mulher-mãe permanece viva a 2.500 anos...não vou esquecer do que aqui vi. Um abraço carinhoso à esta genial família!
* Maria Helena Kuhner é pesquisadora, escritora, criadora e organizadora do Catálogo brasileiro de dramaturgia
MICHÉLE SATO - ORÁCULO DE VITÓRIA
Recentemente, conheci um oráculo de sentidos polissêmicos, onde corredores, chão e paredes assimilavam contornos labirínticos de beleza sensível. O passeio pela casa, jardim e mundo, evoca a lembrança Shakespeariana da tragédia, pornografia, infernos e algumas expressões artísticas eram macabros. E simultaneamente havia comédia, erotismo, espiritualidade e leveza na estética da Vitória Basaia. Belo e Feio desfilavam imbricados, como se no contraforte do diverso, as cores, os relevos e os sentidos se misturassem numa tensiva proposição da ordem na desordem. Meu olhar fenomenológico assistia a dança dos contrários, mas ultrapassando o olhar, convidava a ressignificar meu próprio mundo. A linguagem filosófica ocorria através das pinturas e esculturas espalhadas em cada pedacinho do território Basaiano, como se fosse “um universo numa casca de noz”. A matéria bruta tornou-se viscosa, e se Manoel de Barros transforma a lesma em poesia, Vitória Basaia também tem talento em transformar o feio em belo em suas expressões da arte. Assim reconheci em Vitória Basaia , uma filósofa que emana seus pensamentos através da arte, tal qual o belga surrealista, René Magrite.
No holofote de suas luzes, guarda-chuvas avelhantados tornam-se aranhas, geladeiras velhas ganham roupas novas na pintura filosófica, as garrafas plásticas não se destinam aos lixões e nem os brinquedos antigos escapam da organização de formas e relevos, do prazer erótico desta leitura que acontecia no jardim, na voz da artista, nos cantos de seu oráculo e no prazer do momento. Talvez não fosse um texto institucional, mas emanava uma metalingüística que transcendia o ser, com liberdade para interpretar o trabalho subterrâneo da arte. As narrativas paralisam em alguns momentos, como se permitisse o invisível e o silêncio da transcendência de valores e não apenas de forma, assinalando o desejo impetuoso da revolução. Parecia que os bonecos sentados em cada parte da casa narravam seus testemunhos na esperança sem limites, e embora o prazer e a dor de Eros e Thanatos se evocassem conjugadas no ciclo inacabado da vida e morte, a transformação da matéria emitia uma energia grandiosa da beleza.
Filosofia e arte lutam contra a satisfação carnal, sorvendo a flor e o orvalho, os tons e semitons do espírito ao milagre da transformação. O oráculo de Vitória soa como a revelação de Fernando Pessoa: “tanto a arte como a ciência, é uma confissão que a vida não basta”. A linguagem poética é metafórica, mágica e feiticeira. Convida-nos a submergir e emergir no plano cotidiano e grandioso, e no limite do mundo, transcender o próprio sonho. A filosofia Basaiana é singular, pois nenhuma obra é igual a outra. Há sua marca indelével de olhar o mundo, que também se transmuda nas variações das temáticas, na interpretação orgástica dos símbolos, no voyeurismo obsessivo de sua esperança, ou na sensualidade de seu convite.
Na escuridão da noite, não há centros, nem periferias que resistam as vozes murmurantes da consciência – os fantasmas espreitam nos relâmpagos ad mediocridade, e juntamente com as luzes dos raios, conseguem denunciar a desventura planetária. Nem o erotismo noturno consegue escapar das armadilhas, pois a ironia do dualismo é mais inexaurível: as máquinas do mundo se contrapõe e se espelham no crepúsculo da aurora que auncia a claridade de um novo dia. Considerar a arte Basaia, é também reconhecer que situamo-nos no epicentro da filosofia que de novo nos leva á ambigüidade, pois toda a alteridade é dramática, porque chamada á comunhão para continuar sendo, nunca pode ser de entrega total.
No paradoxo de seu nome, Vitória não cria para ganhar, mas trabalha obsessivamente para a inclusão de todos, e não de si própria. Por alguns instantes, parece querer a solidão de seu isolamento etéreo, e simultaneamente transcende seu próprio oráculo para manter a distinção o o limite indelével de não poder nunca ser todos. Na solidão rumorosa de seu percurso, entre família, amigos e admiradores, a arte de Vitória Basaia revela uma linguagem filosófica que ressignifica o mundo.
MICHÈLE SATO é educadora ambiental fascinada pelas expressões artísticas, com especial ênfase no surrealismo. Com 18 livros publicados, teve a honra de ser finalista do prêmio Jabuti em 2006, na categoria educação e psicologia. É professora e pesquisadora da UFMT (Educação) e da UFSCar (Ecologia), tendo vivências em várias áreas do conhecimento. Um destaque no seu currículo revela a amizade com a família da Vitória Basaia, pois a aprendizagem constante com esta maravilhosa família é um saber infinito.
Texto de 02 de abril de 2006
quinta-feira, 17 de março de 2011
Universo Inquieto
Criar é sempre uma possibilidade
José Serafim Bertoloto[1]
Curador da Mostra
Vitória Basaia é uma artista que não nasceu em Mato Grosso, mas a sua integração participativa dá se, de forma tal, que em momento nenhum a consideramos estrangeira. Com a sua irreverente performance, roupas longas e tiaras na cabeça, ela vai chegando de mansinho - como quem não quer nada - nos lugares, nas reuniões e, quando menos se espera, lá está ela dando o seu palpite, o seu recado. Ela, que já exerceu as funções de jornalista, infiltrou-se no movimento sócio-cultural, participando com idéias, sugerindo reformas, propondo debates, viabilizando confrontos e ajudando a descobrir formulas e novos talentos. Já há alguns anos, mais acomodada, transformou sua casa, na cidade de Várzea Grande, em um verdadeiro “museu”, ou seja, um verdadeiro gabinete de curiosidades, com obras espalhadas por todos os lados. Algumas paredes receberam interferências na construção do reboco, criando verdadeiros cenários, as portas transformaram-se em suportes para pinturas e as colunas de madeira viraram esculturas. O jardim/quintal da casa tem peças que estão na conformação dos bancos, nas aberturas das paredes, grudadas às árvores, no gramado e na parte superior dos muros. Os demais cômodos da casa estão abarrotados de desenhos, pinturas e objetos, que foram transformados ou simplesmente apropriados e eleitos à condição de arte. Na casa nada escapa à sua interferência, que vai desde os tapetes, os sofás, os móveis da cozinha - geladeira, armário, fogão – demais utensílios e até os lustres. Em tudo tem o sabor, o odor, o bolor Basaia. Seu modus vivendi está impregnado pelas mais recônditas arestas. Sua casa é seu ninho, seu primeiro universo, no sentido [2]bachelarniano, pois, “todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa (...) o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo (...) todos os refúgios, todos os aposentos têm valores oníricos consoantes (...) a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz”.
Vitória dificilmente utiliza o pincel, seus trabalhos sempre são produzidos diretamente com as mãos. No inicio da carreira ela confeccionava o seu material produtivo a partir de terra, plantas, resinas e ceras coletadas na região de Chapada dos Guimarães, acrescido das outras regiões do Estado, que visitou, para ministrar cursos e oficinas. Os materiais reciclados têm ocupado com mais força a rotina fatigante do seu cotidiano ordineiro, como também tem feito parte do seu universo de produção, principalmente nas intervenções públicas, na criação de grandes painéis ou na construção coletiva de presépios públicos e em outras atividades realizadas com meninos de rua. Este exaustivo e farto exercício de pesquisa e de construção material atrelado às varias informações teóricas assimiladas por intermédio das leituras no seu devir, lhe confere o domínio autodidata da arte-educação.
Arte e natureza
Essa vivência pessoal, da artista, que faz da criação a afirmação da própria vida, redescobrindo possibilidades do ser, numa busca incessante que visa possibilitar reflexões e novas discussões, como uma forma de olhar, de dentro para fora, no sentido de ampliar e dar visibilidade aos conhecimentos adquiridos. Reconhece as possibilidades expressivas dos materiais e dos suportes artísticos por intermédio da prática e da experimentação, com o intuito de levantar questionamento sobre os sistemas oficiais do fazer artístico, numa busca que ocorre tanto na pesquisa como na produção de idéias, para a ocupação de espaços da arte e dos artistas. Com esta meta, num esquema paralelo e alternativo, com custos baixos para sua produção, interagindo e ampliando a polêmica sobre o meio ambiente e a sua função comunicativa, dando ênfase aos aspectos ecológicos e de interação homem/arte/natureza, ela abriu sua casa/ateliê ao grande público, que pelo fato de constar do Guia Quatro Rodas, a mesma, é visitada por gente de vários países e, infelizmente, quase desconhecida por pessoas da nossa região.
Conheço Basaia desde inícios dos anos noventa e nesses dezesseis anos pude acompanhar o desenvolvimento de sua produção, orientando, dialogando, sugerindo e aprendendo com o seu amadurecimento plástico. Há alguns anos atrás, em visita à sua casa, como especialista em museu de arte, pude constatar que a artista, no afã de produzir e de expor suas obras, estava perdendo parte de sua extensiva produção, por falta de acondicionamento apropriado, de registro fotográfico/filmítico e catalográfico das mesmas. Algo esta sendo feito para garantir a sobrevivência dessas, em imagens digitalizadas, pelo menos a sua permanência enquanto tal, já que as obras podem se perder no infortúnio do tempo.
Projeto Curatorial
Vitória seria a única artista mato-grossense, dentro da sua tendência, uma das poucas ainda vivas no país, a produzir arte bruta (por seu espírito contraditório e pela rudeza da materialidade). Esta característica impar dentro das artes plásticas brasileira, não pode ser deixada a perder, nesse sentido, foi criada, por intermédio do Fundo de Apoio à Cultura do Estado de Mato Grosso, condições para que a artista tenha sua trajetória produtiva registrada em vídeo e nesse livro iconográfico, que possibilitará a divulgação nacional e internacional de sua vida e obra, para pesquisadores e interessados na arte mato-grossense, tornando acessível a fruição de seus trabalhos à todos, numa estratégia de democratização da probabilidade dessa experiência estética.
Com a realização do levantamento de grande parte de sua produção, numa preocupação de interatividade, o vídeo documentário e este livro, poderão apresentar obras que retratem não mimeticamente a natureza, mas sim todos os entrelaçamentos que decorrem dela e que para ela canalizem. No imbricamento dessa malha iconográfica irão surgir, contos, lendas, mitos e crendices ligados à natureza, como também, o trabalho do homem, suas causas e conseqüências sociais. Objetos que permitam gerar intelecção reflexiva da tessitura estética, política e social da artista, no ato de criação.
A artista que em algum momento trabalhou de forma intimista canalizando todas as energias a construir um mundo muito particular, criando formas hibridas, seres imaginários, paisagens ímpares de influências diversas e de contextos contraditórios, passa por uma transformação no sentido de desmaterializar as formas construtivas encontradas, é como se a artista buscasse destruir o mundo até então construído e buscar a essência dessa matéria que o construiu. Dá-nos a impressão, que num ato de incensastes mórbida Basaia, como uma alquimista, bruxa ou deusa, não mais se realiza ao construir novos mundos imaginários, mas agora tenta destruí-los em busca de suas origens, na liquefação da matéria. Ao reduzir a aglomeração de materiais diferentes em uma pasta amorfa e disforme, vai de encontro o seu mais recôndito ser, o nirvana, num reportasse-se às suas entranhas ulteriores a essa vida mundana.
A boneca Barbie
Em sua ultima exposição individual “cosmogonia” a artista tenta polemizar o papel da mulher na vida contemporânea, seus conflitos em busca de liberdade e a opressão sofrida pela sociedade machista, apresentados nas suas bonecas de pano engessadas, amordaçadas, enclausuradas e sufocadas por redomas transparentes, que lhes permitiam ver o mundo, porém sem ter mobilidade de transitarem livremente por ele, ou ate mesmo interferirem nos seus predestinados, destinos.
A boneca Barbie, exemplo da beleza feminina, que acompanha a vida das mulheres a mais de quarenta anos, foi uma iconografia utilizada no sentido de trazer à tona a discussão da beleza idealizada, desde o classicismo até a atualidade, transformando a estética feminina numa ditadura da magreza, esquelética e ariana. Vitória sentiu na pele esses desejos introjetados no seu cotidiano de criança, como todas as de sua geração, que sofreram e vêm sofrendo até então. Numa ânsia de raiva destrói a boneca, coloca as suas partes em recipientes separados, aglomera as suas cabeças em vidros hermeticamente fechados, cola as suas partes e a massifica sobre placas mães de computadores, dá lhes novas funções e roupagens, vulgariza a sua magia em réplicas do cotidiano mais ordinário possível. Ao trancafiá-las, em armarinhos de banheiros, ao lado de outros acessórios ignóbeis, a artista não só ridiculariza o seu material made in chine, dos um real e noventa e nove centavos, espalhados por todo o território nacional, como também discute e desloca a sua fragilidade para a da mulher, que se perdeu em essência, nesse afã de fêmea fatal, aprisionada nesse hábito convencional e simbólico do mundo capitalista. Na exposição, a boneca é desapropriada de suas vestes originais, que nua se mistura a outras, feitas de pano, que juntas vão satisfazer os desejos eloqüentes, de um publico ávido em lhe possuir por alguns instantes, modificá-las, dar lhes novas vestimentas e maquilagem, socializá-las, gerar agrupamentos e reproduzi-las em um recuerdo, na maquina de xerocar. O resultado da produção interativa, dos espectadores artistas, era afixado em um mural ou em varais para futuras manipulações, depois foi transformado em um caderno, para novas reflexões da própria artista. Parte das bonecas de pano que compunham a exposição haviam sofrido a interferência da artista, que além de transformá-las em andróides, dá lhes formatos bizarros, engessando e costurando-as umas às outras, coloca nas espremidas em molduras e usa seus corpos como suporte para poemas e textos diversos, de sua digressão. Vide o exemplo:
Arte e natureza
Essa vivência pessoal, da artista, que faz da criação a afirmação da própria vida, redescobrindo possibilidades do ser, numa busca incessante que visa possibilitar reflexões e novas discussões, como uma forma de olhar, de dentro para fora, no sentido de ampliar e dar visibilidade aos conhecimentos adquiridos. Reconhece as possibilidades expressivas dos materiais e dos suportes artísticos por intermédio da prática e da experimentação, com o intuito de levantar questionamento sobre os sistemas oficiais do fazer artístico, numa busca que ocorre tanto na pesquisa como na produção de idéias, para a ocupação de espaços da arte e dos artistas. Com esta meta, num esquema paralelo e alternativo, com custos baixos para sua produção, interagindo e ampliando a polêmica sobre o meio ambiente e a sua função comunicativa, dando ênfase aos aspectos ecológicos e de interação homem/arte/natureza, ela abriu sua casa/ateliê ao grande público, que pelo fato de constar do Guia Quatro Rodas, a mesma, é visitada por gente de vários países e, infelizmente, quase desconhecida por pessoas da nossa região.
Conheço Basaia desde inícios dos anos noventa e nesses dezesseis anos pude acompanhar o desenvolvimento de sua produção, orientando, dialogando, sugerindo e aprendendo com o seu amadurecimento plástico. Há alguns anos atrás, em visita à sua casa, como especialista em museu de arte, pude constatar que a artista, no afã de produzir e de expor suas obras, estava perdendo parte de sua extensiva produção, por falta de acondicionamento apropriado, de registro fotográfico/filmítico e catalográfico das mesmas. Algo esta sendo feito para garantir a sobrevivência dessas, em imagens digitalizadas, pelo menos a sua permanência enquanto tal, já que as obras podem se perder no infortúnio do tempo.
Projeto Curatorial
Vitória seria a única artista mato-grossense, dentro da sua tendência, uma das poucas ainda vivas no país, a produzir arte bruta (por seu espírito contraditório e pela rudeza da materialidade). Esta característica impar dentro das artes plásticas brasileira, não pode ser deixada a perder, nesse sentido, foi criada, por intermédio do Fundo de Apoio à Cultura do Estado de Mato Grosso, condições para que a artista tenha sua trajetória produtiva registrada em vídeo e nesse livro iconográfico, que possibilitará a divulgação nacional e internacional de sua vida e obra, para pesquisadores e interessados na arte mato-grossense, tornando acessível a fruição de seus trabalhos à todos, numa estratégia de democratização da probabilidade dessa experiência estética.
Com a realização do levantamento de grande parte de sua produção, numa preocupação de interatividade, o vídeo documentário e este livro, poderão apresentar obras que retratem não mimeticamente a natureza, mas sim todos os entrelaçamentos que decorrem dela e que para ela canalizem. No imbricamento dessa malha iconográfica irão surgir, contos, lendas, mitos e crendices ligados à natureza, como também, o trabalho do homem, suas causas e conseqüências sociais. Objetos que permitam gerar intelecção reflexiva da tessitura estética, política e social da artista, no ato de criação.
A artista que em algum momento trabalhou de forma intimista canalizando todas as energias a construir um mundo muito particular, criando formas hibridas, seres imaginários, paisagens ímpares de influências diversas e de contextos contraditórios, passa por uma transformação no sentido de desmaterializar as formas construtivas encontradas, é como se a artista buscasse destruir o mundo até então construído e buscar a essência dessa matéria que o construiu. Dá-nos a impressão, que num ato de incensastes mórbida Basaia, como uma alquimista, bruxa ou deusa, não mais se realiza ao construir novos mundos imaginários, mas agora tenta destruí-los em busca de suas origens, na liquefação da matéria. Ao reduzir a aglomeração de materiais diferentes em uma pasta amorfa e disforme, vai de encontro o seu mais recôndito ser, o nirvana, num reportasse-se às suas entranhas ulteriores a essa vida mundana.
A boneca Barbie
Em sua ultima exposição individual “cosmogonia” a artista tenta polemizar o papel da mulher na vida contemporânea, seus conflitos em busca de liberdade e a opressão sofrida pela sociedade machista, apresentados nas suas bonecas de pano engessadas, amordaçadas, enclausuradas e sufocadas por redomas transparentes, que lhes permitiam ver o mundo, porém sem ter mobilidade de transitarem livremente por ele, ou ate mesmo interferirem nos seus predestinados, destinos.
A boneca Barbie, exemplo da beleza feminina, que acompanha a vida das mulheres a mais de quarenta anos, foi uma iconografia utilizada no sentido de trazer à tona a discussão da beleza idealizada, desde o classicismo até a atualidade, transformando a estética feminina numa ditadura da magreza, esquelética e ariana. Vitória sentiu na pele esses desejos introjetados no seu cotidiano de criança, como todas as de sua geração, que sofreram e vêm sofrendo até então. Numa ânsia de raiva destrói a boneca, coloca as suas partes em recipientes separados, aglomera as suas cabeças em vidros hermeticamente fechados, cola as suas partes e a massifica sobre placas mães de computadores, dá lhes novas funções e roupagens, vulgariza a sua magia em réplicas do cotidiano mais ordinário possível. Ao trancafiá-las, em armarinhos de banheiros, ao lado de outros acessórios ignóbeis, a artista não só ridiculariza o seu material made in chine, dos um real e noventa e nove centavos, espalhados por todo o território nacional, como também discute e desloca a sua fragilidade para a da mulher, que se perdeu em essência, nesse afã de fêmea fatal, aprisionada nesse hábito convencional e simbólico do mundo capitalista. Na exposição, a boneca é desapropriada de suas vestes originais, que nua se mistura a outras, feitas de pano, que juntas vão satisfazer os desejos eloqüentes, de um publico ávido em lhe possuir por alguns instantes, modificá-las, dar lhes novas vestimentas e maquilagem, socializá-las, gerar agrupamentos e reproduzi-las em um recuerdo, na maquina de xerocar. O resultado da produção interativa, dos espectadores artistas, era afixado em um mural ou em varais para futuras manipulações, depois foi transformado em um caderno, para novas reflexões da própria artista. Parte das bonecas de pano que compunham a exposição haviam sofrido a interferência da artista, que além de transformá-las em andróides, dá lhes formatos bizarros, engessando e costurando-as umas às outras, coloca nas espremidas em molduras e usa seus corpos como suporte para poemas e textos diversos, de sua digressão. Vide o exemplo:
“O dia engole a noite. A noite engole o dia e o cotidiano vai ficando buchudo, inflado de vazios”.
As bonequinhas de plástico também renderam muitas outras obras, além de telas usado, em seus armarinhos de banheiros ou em frigideiras e torradeiras, numa discussão do sagrado e do profano a artista as adere em discos lasers descartáveis juntamente com restos de computadores e transistores de TV e rádio, enleadas por uma película de látex avermelhada que lhes dá um aspecto placentário e nojento, ao mesmo tempo em que sugere a morte da nossa liberdade, nesse emaranhado tecnológico e da falsificação, propõe uma redenção às várias possibilidades de recursos que ela nos possibilita.
Este conjunto de obras exacerba o conflito dual de nossas existências como o bem e mau, o belo e o feio, o rígido e mole, arte e não arte. A presença de imagens iconográficas do cristianismo, entremeada a esta parafernália dantesca, dá ao objeto um aspecto de sarcófagos ou criptas, que são reforçados pela cor preta, no fundo da caixa “funeral” envidraçada, do suporte elegido para completar a obra. Ao observarmos a obra nosso rosto refletido se mistura as imagens criando um cenário surreal e insólito, gerando certo desequilíbrio emocional, um conflito.
Suas quase mulheres; feitas de meia calça recheadas com mantas de poliéster; são formas arredondadas e retorcidas que nos possibilitam visualizar corpos humanos compactos, oprimidos e disformes. A artista possibilita uma envergadura e flexibilidades aos corpos que dificilmente se consegue na vida real. Ela distorce as formas humanas, agiganta as bocas, transforma-as em vaginas, valoriza alguns aspectos e suprimem outros, na intenção da representação da fêmea oprimida, novamente aqui, enclausuradas em redomas de vidro. Esse aspecto angustiante das imagens geradas não inibe as nossas percepções mnemônicas, nem mesmo os nossos desejos eidéticos, mas cria uma receptividade, hilária, eloqüente, mórbida e mordaz.
Nichos e Caixas
Em outras caixas vitórias idealizou santos feitos de bucha natural e outros produtos de origem vegetal, tipo vagens, capins, sementes e cipós, que contrariamente ao conjunto anteriormente citado, agrada em muito nosso olhar. Remete-nos aos santos barrocos, imagens iconográficas, signos visuais, que olho já acostumado a vislumbrar pelo hábito, só trás prazeres sem nenhum estranhamento ou incomodo. As imagens construídas, sobre papel artesanal, mantêm as cores claras dos produtos naturais, criando nichos sacralizados harmônicos de volumetria bastante interessante, enriquecidos por pequenos detalhes de pinturas que completam os adereços da figura idealizada.
O sagrado vem sendo explorado a muito, nas suas santas engarrafadas, nas petes descartadas e retorcidas pelo fogo, nas latinhas recortadas e coladas, formando santas e santos em oratórios de madeiras. Sua presença também é visualizada, em imagens pintadas, nos recortes projetados das janelas, nas pranchas de papeis reciclados e resinas, que imitam as taipas, das paredes das casas antigas, da população pobre, da região ribeirinha.
Desenhos
Basaia desenha constantemente, entre uma série de objetos e outros afazeres artísticos, sempre volta para eles. Os desenhos são feitos à mão, utilizando pigmentos de terra socada, triturada ou algumas vezes giz pastel artesanal, que sobre o papel vão construindo manchas coloridas que se transformam em seres metamorfoseados, bichos homens/homens bichos, uma antropomorfia desenfreada que dá margens a umas centenas de obras. Sua construção pictórica não tem o sentido narrativo ou literário, mas condensa indiciais que se reportam aos seres primitivos terrestres, seres míticos do imaginário coletivo, personagens oriundos da agregação de vários animais terrestres, com fortes influências aquáticas. A cobra o jacaré e a tartaruga são elementos renitentes em sua obra, o peixe e o girino vêm sempre entrelaçados ou consorciados a outras imagens com caracteres rupestres. Os felinos já privilegiaram uma de suas fases, pequenos formatos em tiras, de mulheres gatos em situações inusitadas. Esses trabalhos densos de colorido impar exalta o lado fêmea da mulher, sua sensualidade e eloqüência. Características que aparecem em outros desenhos, onde mulheres se insinuam sobre felinos quando não os estão usando em forma de estola, da mesma forma que jacarés e serpentes, em adereços de pescoço.
Arqueologia da morbidez
Se intitulando como arqueóloga urbana a artista leva mão a tudo que lhe atrai o olhar, recolhe para o ateliê os mais diversificados objetos encontrados nas suas incursões pela redondeza onde mora, nos trajetos corriqueiros, nas visitas em lojas de materiais de construção e de demolição. Tintas vencidas, móveis velhos, pedaços de madeira, concreto, plástico, metal, estantes expositoras de lojas, enfim, objetos descartáveis jogados fora no lixo, que se transformam em projetos artísticos conceituais, ou simplesmente em objetos escultoricos retorcidos, queimados, amalgamados, que nos causam certo estranhamento, um frison, um incomodo, um deslocamento da percepção primeira, uma angustia ou risadas pelo humor mórbido ou uma alegria causada pelo inusitado, pelo novo. Nesse seu desespero de recolher “coisas” coloca seus três filhos e o marido em situações complicadas e divertidas, obrigando-os a desfilarem com esses objetos nos lugares públicos mais diversos possíveis, chamando a atenção de todos os transeuntes que por eles passam ou o cercam, para fazer perguntas indiscretas ou torcerem o nariz. Recordo-me de um fato, ocorrido no ultimo Salão Jovem Arte Mato-grossense, quando seu marido e filho, adentravam ao recinto com suas obras, umas peças de plásticos derretidos, isopor e resina, que tinham a aparência de pedaços de ossos com carne e gordura, causando asco nas pessoas que se encontravam pelo caminho, obrigando-as a cortarem volta, para não passarem perto “daquela coisa” monstruosa, nojenta. A artista ao saber do ocorrido, gargalhava felicíssima, por atingir seu objetivo, provocar o efeito desejado.
Este conjunto de obras exacerba o conflito dual de nossas existências como o bem e mau, o belo e o feio, o rígido e mole, arte e não arte. A presença de imagens iconográficas do cristianismo, entremeada a esta parafernália dantesca, dá ao objeto um aspecto de sarcófagos ou criptas, que são reforçados pela cor preta, no fundo da caixa “funeral” envidraçada, do suporte elegido para completar a obra. Ao observarmos a obra nosso rosto refletido se mistura as imagens criando um cenário surreal e insólito, gerando certo desequilíbrio emocional, um conflito.
Suas quase mulheres; feitas de meia calça recheadas com mantas de poliéster; são formas arredondadas e retorcidas que nos possibilitam visualizar corpos humanos compactos, oprimidos e disformes. A artista possibilita uma envergadura e flexibilidades aos corpos que dificilmente se consegue na vida real. Ela distorce as formas humanas, agiganta as bocas, transforma-as em vaginas, valoriza alguns aspectos e suprimem outros, na intenção da representação da fêmea oprimida, novamente aqui, enclausuradas em redomas de vidro. Esse aspecto angustiante das imagens geradas não inibe as nossas percepções mnemônicas, nem mesmo os nossos desejos eidéticos, mas cria uma receptividade, hilária, eloqüente, mórbida e mordaz.
Nichos e Caixas
Em outras caixas vitórias idealizou santos feitos de bucha natural e outros produtos de origem vegetal, tipo vagens, capins, sementes e cipós, que contrariamente ao conjunto anteriormente citado, agrada em muito nosso olhar. Remete-nos aos santos barrocos, imagens iconográficas, signos visuais, que olho já acostumado a vislumbrar pelo hábito, só trás prazeres sem nenhum estranhamento ou incomodo. As imagens construídas, sobre papel artesanal, mantêm as cores claras dos produtos naturais, criando nichos sacralizados harmônicos de volumetria bastante interessante, enriquecidos por pequenos detalhes de pinturas que completam os adereços da figura idealizada.
O sagrado vem sendo explorado a muito, nas suas santas engarrafadas, nas petes descartadas e retorcidas pelo fogo, nas latinhas recortadas e coladas, formando santas e santos em oratórios de madeiras. Sua presença também é visualizada, em imagens pintadas, nos recortes projetados das janelas, nas pranchas de papeis reciclados e resinas, que imitam as taipas, das paredes das casas antigas, da população pobre, da região ribeirinha.
Desenhos
Basaia desenha constantemente, entre uma série de objetos e outros afazeres artísticos, sempre volta para eles. Os desenhos são feitos à mão, utilizando pigmentos de terra socada, triturada ou algumas vezes giz pastel artesanal, que sobre o papel vão construindo manchas coloridas que se transformam em seres metamorfoseados, bichos homens/homens bichos, uma antropomorfia desenfreada que dá margens a umas centenas de obras. Sua construção pictórica não tem o sentido narrativo ou literário, mas condensa indiciais que se reportam aos seres primitivos terrestres, seres míticos do imaginário coletivo, personagens oriundos da agregação de vários animais terrestres, com fortes influências aquáticas. A cobra o jacaré e a tartaruga são elementos renitentes em sua obra, o peixe e o girino vêm sempre entrelaçados ou consorciados a outras imagens com caracteres rupestres. Os felinos já privilegiaram uma de suas fases, pequenos formatos em tiras, de mulheres gatos em situações inusitadas. Esses trabalhos densos de colorido impar exalta o lado fêmea da mulher, sua sensualidade e eloqüência. Características que aparecem em outros desenhos, onde mulheres se insinuam sobre felinos quando não os estão usando em forma de estola, da mesma forma que jacarés e serpentes, em adereços de pescoço.
Arqueologia da morbidez
Se intitulando como arqueóloga urbana a artista leva mão a tudo que lhe atrai o olhar, recolhe para o ateliê os mais diversificados objetos encontrados nas suas incursões pela redondeza onde mora, nos trajetos corriqueiros, nas visitas em lojas de materiais de construção e de demolição. Tintas vencidas, móveis velhos, pedaços de madeira, concreto, plástico, metal, estantes expositoras de lojas, enfim, objetos descartáveis jogados fora no lixo, que se transformam em projetos artísticos conceituais, ou simplesmente em objetos escultoricos retorcidos, queimados, amalgamados, que nos causam certo estranhamento, um frison, um incomodo, um deslocamento da percepção primeira, uma angustia ou risadas pelo humor mórbido ou uma alegria causada pelo inusitado, pelo novo. Nesse seu desespero de recolher “coisas” coloca seus três filhos e o marido em situações complicadas e divertidas, obrigando-os a desfilarem com esses objetos nos lugares públicos mais diversos possíveis, chamando a atenção de todos os transeuntes que por eles passam ou o cercam, para fazer perguntas indiscretas ou torcerem o nariz. Recordo-me de um fato, ocorrido no ultimo Salão Jovem Arte Mato-grossense, quando seu marido e filho, adentravam ao recinto com suas obras, umas peças de plásticos derretidos, isopor e resina, que tinham a aparência de pedaços de ossos com carne e gordura, causando asco nas pessoas que se encontravam pelo caminho, obrigando-as a cortarem volta, para não passarem perto “daquela coisa” monstruosa, nojenta. A artista ao saber do ocorrido, gargalhava felicíssima, por atingir seu objetivo, provocar o efeito desejado.
[1] Artista plástico e historiador, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, mestre em Artes pela Escola de Comunicação e Artes da USP/SP, especialista em Estudos em Museu de Arte pelo MAC/USP. Professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Cuiabá, Pesquisador e Curador do Museu de Arte e de Cultura Popular da UFMT. Participou como júri em vários Salões de Artes e com uma grande produção de textos críticos sobre a produção iconográfica mato-grossense.[2] Gaston Bachelard, A poética do espaço. trad. de Antonio de Pádua Danesi,. Matins Fontes, 2000 p. 25
quarta-feira, 16 de março de 2011
Texto José Castello
Vitória Basaia
Para suportar o enigma
José Castello
A arte de Vitória Basaia acolhe a estranheza, o pulsar secreto do mundo, sem a ilusão de barrar ou, ao contrário, de ceder mansamente, ao que eles guardam de enigmático. O mundo é espantoso, a realidade se interpõe como uma parede a bloquear nosso acesso à verdade e à certeza. E nesse caso a arte _ ao menos a arte pulsante como a de Vitória _ surge como possibilidade de compaixão e de mediação.
Bichos e homens, envoltos em segredos e dissolvidos na grande borra da vida, se igualam num mesmo ponto: a perplexidade diante do real. Não há muita diferença entre o cão que se assusta diante de uma sombra e o homem que se encolhe quando confrontado com o desconhecido. Ambos provam o enigma, ambos tremem diante dele, e na obra de Vitória Basaia esse tremor os iguala.
Daí a ausência de limites entre real e invenção com que ela trabalha. Daí também os materiais mais inesperados, retirados do cotidiano e transformados em ouro, que Vitória _ como uma bruxa das artes _ trata de deformar e de metamorfosear.
“Enquanto a ciência nos traz segurança, a arte está concebida para nos intranqüilizar”, disse Georges Braque. Por isso, o método de Braque era a decomposição: de imagens, de clichês, de procedimentos consagrados, de modelos. Daí seu interesse pelos personagens simplificados _ quase primitivos _ mas também muito deformados. E o choque que a pintura de Braque até hoje provoca.
Vitória Basaia está muito distante de Braque, pois trabalha sobre outra tradição, vem de outro mundo; mas seu interesse em decompor e recompor a realidade, em nela interferir e depois se distanciar é muito semelhante. De todo modo, observamos os seres misteriosos de Vitória e podemos pensar em uma tela de Braque como o “Grande nu”, guardada no Centre Pompidou, em Paris. A aparência primitiva é a mesma. O esforço para se limitar ao essencial e ao mais antigo, também. O gosto solar, a falta de medo do infantil, a liberdade extrema de quem faz o que quer.
Os personagens dos desenhos e pinturas de Vitória Basaia são seres limítrofes, a meio caminho entre o homem e o bicho. São pontes lançadas sobre um abismo. Se já temos dificuldades para aceitar, mesmo depois de Darwin, que viemos de um bicho _ o macaco _ e não do sopro de deus, mais dificuldades ainda temos para acolher a obra de Vitória, na qual o homem faz o movimento inverso, isto é, em vez de continuar a vir do bicho, se dirige de volta a ele, e nesse retorno, em vez de regredir, cresce ainda mais.
Vitória se inspira nos personagens assombrosos das fendas e das grotas dos chapadões. É nesses desvãos, nessas paisagens muito estreitas, que sobrevivem esses seres intermediários _ que resiste a possibilidade humana de criação e de superação. São seres que tendem ao mito e à fantasia, seres a meio caminho entre uma coisa e outra, híbridos e inconstantes, quer dizer, vivos. Não os seres inertes da arte consagrada, e sim os seres móveis, soltos entre um instante e outro, da arte sagrada.
Interpostos entre a limitação do que é e a impossibilidade do que não é, eles se sustentam como representantes da vida, que é sempre processo e superação, corrida desenfreada e luta, para terminar inevitavelmente na morte. Ou seja: na anulação do que é. Dessa condição paradoxal nasce a beleza dos trabalhos de Vitória. É dessa posição limítrofe, a meio caminho entre a terra e os céus, entre o que é e o que não é, que se impõe o mito da Vitória “bruxa” _ pois ela também não deixa de mexer em forças que não pode controlar, forças que a submetem e que, ainda assim, ela insiste em tentar vencer.
Entre o mundo de hoje e a poeira dos arquétipos, entre as experiências futuristas e o arcaico, ela se move como uma simples artesã, discreta, persistente, fiel. Sua casa em Várzea Grande, MT, ela também um ambiente híbrido entre a residência e o ateliê, entre o fazer e o ser, confirma essa dupla posição de Vitória. Aceitar, mas resistir. Retornar, mas avançar. Ser, mas não ser. Criar, mas a partir do que já é.
Alguns, insistindo na imagem da bruxa, chegam a dizer que aquilo que Vitória Basaia faz não é arte, mas alquimia. De Clarice Lispector se dizia a mesma coisa: que não se tratava de literatura, mas de bruxaria. Convidada a falar em um Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, Clarice se limitou a ler “O ovo e a galinha”, um de seus contos mais enigmáticos. E mais nada disse. Se fosse convidada também, Vitória por certo se limitaria a exibir alguma de suas obras perturbadoras, e ficaria quieta a um canto.
Essa ascendência da obra, que se impõe sobre seu criador, que o supera e o sujeita, é uma marca dos grandes artistas. Justamente porque habita essa zona intermediária _ e com isso se afasta da festança das galerias, do mercado de arte, do colunismo social _ Vitória Basaia parece lidar com elementos que não fazem parte da vida comum e, até mesmo, que são estranhos à arte. Parece lidar com elementos “superiores”, ou transcendentes, parece estar nas nuvens.
De fato, quando ela transforma mouses de computadores em camundongos, ou quando faz do isopor, um pedaço de carne sangrenta, é com a técnica da metamorfose que lida. Ela parte, cada vez mais, de materiais estranhos e improváveis, de “inutildades” como diria o poeta mato-grossense (do sul) Manoel de Barros. Mas é no “inútil”, no desprezível, no lixo, que Vitoria acessa o pulsar da vida.
E nessa pulsação, ela toca em elementos fundamentais como o inconsciente _ a que o preconceito costuma encobrir, também, com a alcunha de misticismo. A cada mudança que realiza na ordem normal da vida, a cada puxão que dá no tapete de serenidade sobre o qual nos sustentamos, é todo um mundo de valores que Vitória desloca e inverte. Suas esculturas, em vez de decorar, perturbam. Seus símbolos, em vez de significar, interrogam. Quando trata de desenhar elementos vivos, ela os exacerba, ou mesmo enlouquece, repuxando a vida a seus limites e a tornando estranha e imporvável.
Zona tida como de eventos místicos e de aparições, a Chapada dos Guimarães é o solo ideal para a arte de Vitória Basaia. Mas que não se espere de sua arte fórmulas esotéricas, ou sortilégios mágicos. Sua arte seduz, mas também choca. É do impacto que produz sobre quem a observa, ao contrário, que ela tira sua sedução. Arte de perguntas, ela repuxa as dimensões oficiais do mundo, alarga nossa visão cotidiana, antecipa ou anula variações prováveis, e faz da beleza, susto.
Arte imantada no regional, não é, contudo, arte regionalista, ao contrário, é arte que explode nossas expectativas a respeito da cor local, da tradição primitiva e do “popular”. Se ela nos provoca com o inusitado e até o absurdo, não é pelo prazer da provocação, mas sim para relativizar nossas certezas e para colocar o desconhecimento, e mesmo o enigma, no lugar do saber.
Somos sujeitos do desconhecimento _ o que podemos ver, tudo o que podemos ver, como já disse um psicanalista, é só um brevíssimo facho de luz. Mais nada. Nesse caso, é bom não ter tantas certezas. É com essa desconfiança, boa desconfiança, que Vitoria Basaia trabalha. Não custa ver de outra maneira, não custa observar de outra posição, não custa mudar de lugar. Não custa duvidar e rever mais uma vez, como se nunca tivéssemos visto.
“A arte é uma mentira que nos leva a captar a verdade”, disse Pablo Picasso. “O artista tem que convencer os outros da veracidade de suas mentiras”. Mentira, ou novas perspectivas, novas maneiras de desconfiar e de observar? “Na realidade, a arte é uma forma de encantamento”, disse Goerges Braque _ e as idéias de Braque e de Picasso, somadas, nos ajudam a chegar um pouco mais perto de Vitória e a acolher a riqueza de sua arte.
Mistérios? Sim _ mas nada que seja da conta do esoterismo, ou das religiões, ou das teologias. Transfigurações, metamorfoses, bruxarias? Sim _ mas nada que nos leve a temer uma fogueira, ou um caldeirão. Foi em A metamorfose, sua estupenda novela, que Frans Kafka nos convenceu, de vez, que, mesmo quando acordamos transformados em uma nojenta barata, temos que saber o que fazer com isso. Viver é ir em frente. A arte é fazer, seja do que for, arte.
A arte de Vitória Basaia reproduz o assombro humano. É arte do desassossego, mas também arte da aceitação. Arte que não renega, ou camufla o real, mas que faz dele o próprio mistério. É sobre a vida, sempre, que Vitória se debruça, sem preconceitos e sem certezas, guiada unicamente pelo espanto. (FIM)
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
A Casa Basaia
A Casa Basaia
Ludmila Brandão[1]
(...)
Meu ateliê é uma extensão da minha cabeça, guarda meus recursos, instrumentos, anotações visuais, tudo o que é alimento para minha imaginação e resíduo de meus projetos. (Regina Silveira).
(...)
Meu ateliê é um lugar fora da vida cotidiana, é um estado de suspensão. É um espaço específico onde produzo os trabalhos, faço os projetos, escrevo ou recebo pessoas. É o meu duplo, a expansão da minha cabeça, é a amplificação de um estado mental. Tem mais a ver com a fermentação das idéias, a formulação de projetos, do que com a execução técnica, já que muitos trabalhos meus são realizados fora, pois são muito grandes (Carmela Gross).
(...)
Gosto de guardar em meu ateliê objetos curiosos, abandonados, descartados; essas coisas significam para mim um renascimento, uma segunda chance, o ato de fazer com que existam de novo (Rochelle Costi).
(...)
O meu ateliê é como um polvo com os seus tentáculos que vão invadindo tudo. Eu tenho uma cesta cheia de santos barrocos que estão de quarentena no momento. Enjoei deles, deixei aí um pouco e depois decido o que fazer com eles. (...) Tem coisas que faço que não vendo para ninguém, nem mesmo exponho para não haver possibilidade de me afastar delas, por exemplo uma obra que se chama ‘Baixada Fluminense’, que tem três caixinhas com desenho de caveiras que ao serem sacudidas, gemem (Lygia Pape) [2].
Tenho um apreço especial por casas. Casas que se constituem como territórios existenciais humanos. Não estou falando dos espaços protegidos, seguros − que as publicidades de condomínio (cada vez mais fechados) prometem −, nem tão pouco da propriedade adquirida em 300 parcelas convertida em todo o seu patrimônio. Casas-território se definem por outros critérios e valores. Da ordem do expressivo. São espaços necessariamente singulares nos quais as pessoas, que ali fazem morada, têm um encontro especial. De natureza íntima. Tem gente que precisa de muito pouco, às vezes, apenas uma poltrona que roubou as curvas de seu corpo. Nesse encontro, os elementos de ambos produzem zonas de sombreamento mútuo nas quais é impossível discernir o humano do não-humano, o objetivo do subjetivo, a matéria da subjetividade, a realidade da imaginação.
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Terra é a cor. Plástico, a matéria da qual é feito esse mundo, ainda que ele contenha barros, metais, isopores, sementes, fibras e pigmentos. Na sucessão das obras que começamos a ver desde a fachada da casa até o muro do fundo do quintal, passando por espaços amplos, outros exíguos, de onde explodem, escorrem, vazam peças de todos os tamanhos e mais variadas formas/materiais, descobrimos uma outra obra, maior, inapreensível, irrequieta, a própria casa, a casa Basaia, aquela que abriga, rebate ou compõe o universo fantástico de Vitória Basaia, artista.
De saída, haveremos de lidar com a natureza inclassificável desse espaço: Museu? Galeria? Ateliê de artista? Casa? Obra plástica? Ainda que persiga a especialização convencional da casa ocidental moderna, com salas, quartos, copa-cozinha, banheiros, varandas, depósitos, jardins, percebemos o esforço do gesto que, em cada canto, quer inventar um modo próprio de ser espaço, de ser quarto, cozinha, banheiro. De ser um lugar, singular.
É aqui que compreendemos o projeto poético de Vitória Basaia. Diferentemente de artistas que recortam no mundo algo para ser explorado − uma matéria, um problema, um conceito, um delírio, um desejo, etc. −, Basaia está entre aqueles que se lançam no projeto de inventar mundo, do começo ao fim. Como máquina de criar universo (o único paralelo que temos é o divino), concebe seus elementos, forja criaturas, constrói-lhes moradas e, ao fim de tudo, sopra-lhes no rosto, instintos e narrativas.
Um estudioso das religiões, Mircea Eliade, diz que todas as cosmogonias se organizam a partir da instalação de um centro, que pode ser uma cidade (Jerusalém, Meca), um lugar especial − que inspire epifanias − (o mirante da Chapada, por exemplo), um templo ou, simplesmente, um mastro fundador (a pilastra principal do circo e seu mundo imaginário). De certo modo, todas as nossas casas configuram um centro de mundo, mas poucas desdobram, efetivamente, uma ordem singular que se sobrepõe ao mundo (real?) e, como um polvo, avança sobre tudo, como nos diz Lygia Pape de seu ateliê. É máquina porque, dado o ponto de partida − o princípio da cosmogonia −, a replicação se incumbe do resto.
O infinito começa ali.
Mas, como todo rizoma, nesse mundo se entra por qualquer orifício: seja aquele das dezenas de minúsculas madonas de castanha, das barbies descabeçadas e pequeninas bonecas de plástico, aos totens portentosos, às misteriosas criaturas das matas imaginárias. O que Vitória faz é dar materialidade a esse universo onírico que ela constrói dia a dia, sem folga, como quem tece sua própria existência. Ao mesmo tempo em que tece/inventa, organiza seqüências criativas que dialogam entre si − a natureza e as criaturas; as criaturas e as narrativas; os objetos sagrados e as gêneses, etc. −, sugere sentidos possíveis que se oferecem à nossa imaginação, como esses que agora me ocorrem:
Criaturas − desde as obras mais antigas, as pinturas em papel, figuras estranhas povoam esse universo. Formas que lembram tartarugas, alevinos, gatos estrábicos, fetos, enfim, animais os mais bizarros a fitar-nos humanamente. Há um cheiro de placenta nessas obras. Tenho a impressão que, nos últimos tempos, esses seres saltaram dos papéis, das telas e ganharam corpo, viraram madonas, bonecas, formas femininas escandidas do corpo referente. Confesso aqui o meu absoluto encantamento. Causam-me espanto, rubor e, porque não dizer, compaixão, as bonecas-de-meia reduzidas a seios, coxas, boca e vulva. Uma única linha vermelha mal-costurada assinala o sexo sobrecodificado: o suficiente para fazer-nos pensar se esse é de fato um outro mundo ou se é o nosso mesmo, monstruoso mundo.
Natureza − se nosso esforço histórico tem sido o de naturalizar toda a tralha técnica que inventamos, em sentido contrário, a natureza do mundo Basaia nasce do artifício. O quintal − laboratório para suas criações nesse campo − reúne a curiosos objetos de lata, plástico, cerâmica, vidro, árvores, arbustos e folhagens, como se entre eles não existisse um abismo de natureza, dando origem a uma inusitada paisagem cibernética em que uma catraca nasce, a esmo, do solo e o boneco Michelin repousa entre os galhos do arvoredo como fruto à beira da decomposição.
Em outra categoria de elementos desse universo, encontramos alguns ensaios topográficos. São peças que exploram/inventam topografias como as tetas pontudas (ou pequenos vulcões) produzidas com espinhos de árvore ou os planos de abóbadas dos acondicionadores de ovos e frutas. Sobrevém aqui o desejo de tocar, de pisar, de experimentar, se fosse possível, um terreno assim.
Objetos − em suma, tratam-se aqui, quase sempre de objetos. Deles se constitui grande parte das obras de Vitória Basaia. Mas pode-se dizer que enquanto há objetos que se fazem paisagem e outros nos quais vicejam criaturas, há aqueles objetos “objetos”. E, em meio à imensa variedade deles, destacam-se objetos sagrados e objetos eróticos, que às vezes superpõem-se, despudoradamente, incisivamente. O sexo e a devoção se encontram no êxtase, assim como o prazer e a dor. Por isso mesmo, os objetos “objetos” − mediadores como são entre homens e narrativas − nos inspiram religioso (ligação) respeito ao mesmo tempo em que convidam à experiência mística que a carne, e somente ela, torna efetiva.
Criar, criar, criar. A máquina Basaia, a certa altura, quando o universo está todo delineado, composto, em funcionamento, pergunta-se: afinal, do que somos (as suas criaturas) feitos? Parece-me ser essa a questão que envolve uma última série de obras de Vitória, talvez, a mais enigmática, que este texto quer destacar.
Plástico − Avessa a dar nomes às suas peças, Vitória nomeou esse conjunto (para distingui-lo em meio à profusão de outros) de “trabalhos com lança-chamas”. São peças submetidas ao fogo. Como se uma catástrofe tivesse abatido sobre seu mundo e reduzido tudo − a natureza, as criaturas, os objetos − a um resíduo material, único denominador comum, àquilo do qual somos todos feitos: plástico e nada mais. Como matéria, sabemos que os polímeros foram forjados em laboratório, para a felicidade da vida moderna, feitos para durar eternamente (o que não é, necessariamente, uma virtude). Como propriedade, é aquela de que se vale a arte: a docilidade da matéria subordinada à imaginação. Como qualidade, é a possibilidade de sermos qualquer coisa.
Quando somos crianças, brincamos imitando o mundo dos adultos. Simulamos o futuro em que seremos homens, mulheres, pais, amantes, médicos, professoras, etc. Um dia, deixamos de simular o futuro para viver a vida que o mundo nos oferece. Na maioria das vezes, essa passagem significa o abandono da imaginação, ou a imaginação subordinada à matéria do mundo. Ficamos pobres. Felizmente, alguns, que chamamos artistas, ignoram o imperativo e operam outra passagem, radicalizando a inocente brincadeira de boneca. Ao invés de simularem um mundo futuro, inventam, como Vitória, um mundo outro, presente, à mão, totalmente novo, para o delírio de nossas vidas tristes.
[1] Arquiteta e historiadora, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP com pós-doutorado em Crítica da Cultura pela Université d’Ottawa/Canadá. É professora do Departamento de Artes, do Mestrado em Estudos de Linguagem, do Mestrado em História da UFMT e coordena o Núcleo de Estudos do Contemporâneo (CNPq/UFMT). Entre outros textos, publicou o livro A casa subjetiva: matérias, afectos e espaços domésticos (São Paulo, Perspectiva, 2003).
[2] Excertos da reportagem Casa dos Artistas, de Caio Caramico Soares, Folha de São Paulo, Mais!, 23 de dezembro de 2001.
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