quarta-feira, 16 de março de 2011

Texto José Castello


Vitória Basaia
Para suportar o enigma


 José Castello

         A arte de Vitória Basaia acolhe a estranheza, o pulsar secreto do mundo, sem a ilusão de barrar ou, ao contrário, de ceder mansamente, ao que eles guardam de enigmático. O mundo é espantoso, a realidade se interpõe como uma parede a bloquear nosso acesso à verdade e à certeza. E nesse caso a arte _ ao menos a arte pulsante como a de Vitória _ surge como possibilidade de compaixão e de mediação.
         Bichos e homens, envoltos em segredos e dissolvidos na grande borra da vida, se igualam num mesmo ponto: a perplexidade diante do real. Não há muita diferença entre o cão que se assusta diante de uma sombra e o homem que se encolhe quando confrontado com o desconhecido. Ambos provam o enigma, ambos tremem diante dele, e na obra de Vitória Basaia esse tremor os  iguala.
         Daí a ausência de limites entre real e invenção com que ela trabalha. Daí também os materiais mais inesperados, retirados do cotidiano e transformados em ouro, que Vitória _ como uma bruxa das artes _ trata de deformar e de metamorfosear.
         “Enquanto a ciência nos traz segurança, a arte está concebida para nos intranqüilizar”, disse Georges Braque. Por isso, o método de Braque era a decomposição: de imagens, de clichês, de procedimentos consagrados, de modelos. Daí seu interesse pelos personagens simplificados _ quase primitivos _ mas também muito deformados. E o choque que a pintura de Braque até hoje provoca.
         Vitória Basaia está muito distante de Braque, pois trabalha sobre outra tradição, vem de outro mundo; mas seu interesse em decompor e recompor a realidade, em nela interferir e depois se distanciar é muito semelhante. De todo modo, observamos os seres misteriosos de Vitória e podemos pensar em uma tela de Braque como o “Grande nu”, guardada no Centre Pompidou, em Paris. A aparência primitiva é a mesma. O esforço para se limitar ao essencial e ao mais antigo, também. O gosto solar, a falta de medo do infantil, a liberdade extrema de quem faz o que quer.
         Os personagens dos desenhos e pinturas de Vitória Basaia são seres limítrofes, a meio caminho entre o homem e o bicho. São pontes lançadas sobre um abismo. Se já temos dificuldades para aceitar, mesmo depois de Darwin, que viemos de um bicho _ o macaco _ e não do sopro de deus, mais dificuldades ainda temos para acolher a obra de Vitória, na qual o homem faz o movimento inverso, isto é, em vez de continuar a vir do bicho, se dirige de volta a ele, e nesse retorno, em vez de regredir, cresce ainda mais.
         Vitória se inspira nos personagens assombrosos das fendas e das grotas dos chapadões. É nesses desvãos, nessas paisagens muito estreitas, que sobrevivem esses seres intermediários _ que resiste a possibilidade humana de criação e de superação. São seres que tendem ao mito e à fantasia, seres a meio caminho entre uma coisa e outra, híbridos e inconstantes, quer dizer, vivos. Não os seres inertes da arte consagrada, e sim os seres móveis, soltos entre um instante e outro, da arte sagrada.
         Interpostos entre a limitação do que é e a impossibilidade do que não é, eles se sustentam como representantes da vida, que é sempre processo e superação, corrida desenfreada e luta, para terminar inevitavelmente na morte. Ou seja: na anulação do que é. Dessa condição paradoxal nasce a beleza dos trabalhos de Vitória. É dessa posição limítrofe, a meio caminho entre a terra e os céus, entre o que é e o que não é, que se impõe o mito da Vitória “bruxa” _ pois ela também não deixa de mexer em forças que não pode controlar, forças que a submetem e que, ainda assim, ela insiste em tentar vencer.
         Entre o mundo de hoje e a poeira dos arquétipos, entre as experiências futuristas e o arcaico, ela se move como uma simples artesã, discreta, persistente, fiel. Sua casa em Várzea Grande, MT, ela também um ambiente híbrido entre a residência e o ateliê, entre o fazer e o ser, confirma essa dupla posição de Vitória. Aceitar, mas resistir. Retornar, mas avançar. Ser, mas não ser. Criar, mas a partir do que já é.
         Alguns, insistindo na imagem da bruxa, chegam a dizer que aquilo que Vitória Basaia faz não é arte, mas alquimia. De Clarice Lispector se dizia a mesma coisa: que não se tratava de literatura, mas de bruxaria. Convidada a falar em um Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, Clarice se limitou a ler “O ovo e a galinha”, um de seus contos mais enigmáticos. E mais nada disse. Se fosse convidada também, Vitória por certo se limitaria a exibir alguma de suas obras perturbadoras, e ficaria quieta a um canto.
         Essa ascendência da obra, que se impõe sobre seu criador, que o supera e o sujeita, é uma marca dos grandes artistas. Justamente porque habita essa zona intermediária _ e com isso se afasta da festança das galerias, do mercado de arte, do colunismo social _ Vitória Basaia parece lidar com elementos que não fazem parte da vida comum e, até mesmo, que são estranhos à arte. Parece lidar com elementos “superiores”, ou transcendentes, parece estar nas nuvens.
         De fato, quando ela transforma mouses de computadores em camundongos, ou quando faz do isopor, um pedaço de carne sangrenta, é com a técnica da metamorfose que lida. Ela parte, cada vez mais, de materiais estranhos e improváveis, de “inutildades” como diria o poeta mato-grossense (do sul) Manoel de Barros. Mas é no “inútil”, no desprezível, no lixo, que Vitoria acessa o pulsar da vida.
         E nessa pulsação, ela toca em elementos fundamentais como o inconsciente _ a que o preconceito costuma encobrir, também, com a alcunha de misticismo. A cada mudança que realiza na ordem normal da vida, a cada puxão que dá no tapete de serenidade sobre o qual nos sustentamos, é todo um mundo de valores que Vitória desloca e inverte. Suas esculturas, em vez de decorar, perturbam. Seus símbolos, em vez de significar, interrogam. Quando trata de desenhar elementos vivos, ela os exacerba, ou mesmo enlouquece, repuxando a vida a seus limites e a tornando estranha e imporvável.
         Zona tida como de eventos místicos e de aparições, a Chapada dos Guimarães é o solo ideal para a arte de Vitória Basaia. Mas que não se espere de sua arte fórmulas esotéricas, ou sortilégios mágicos. Sua arte seduz, mas também choca. É do impacto que produz sobre quem a observa, ao contrário, que ela tira sua sedução. Arte de perguntas, ela repuxa as dimensões oficiais do mundo, alarga nossa visão cotidiana, antecipa ou anula variações prováveis, e faz da beleza, susto.
         Arte imantada no regional, não é, contudo, arte regionalista, ao contrário, é arte que explode nossas expectativas a respeito da cor local, da tradição primitiva e do “popular”. Se ela nos provoca com o inusitado e até o absurdo, não é pelo prazer da provocação, mas sim para relativizar nossas certezas e para colocar o desconhecimento, e mesmo o enigma, no lugar do saber.
         Somos sujeitos do desconhecimento _ o que podemos ver, tudo o que podemos ver, como já disse um psicanalista, é só um brevíssimo facho de luz. Mais nada. Nesse caso, é bom não ter tantas certezas. É com essa desconfiança, boa desconfiança, que Vitoria Basaia trabalha. Não custa ver de outra maneira, não custa observar de outra posição, não custa mudar de lugar. Não custa duvidar e rever mais uma vez, como se nunca tivéssemos visto. 
         “A arte é uma mentira que nos leva a captar a verdade”, disse Pablo Picasso. “O artista tem que convencer os outros da veracidade de suas mentiras”. Mentira, ou novas perspectivas, novas maneiras de desconfiar e de observar? “Na realidade, a arte é uma forma de encantamento”, disse Goerges Braque _ e as idéias de Braque e de Picasso, somadas, nos ajudam a chegar um pouco mais perto de Vitória e a acolher a riqueza de sua arte.
         Mistérios? Sim _ mas nada que seja da conta do esoterismo, ou das religiões, ou das teologias. Transfigurações, metamorfoses, bruxarias? Sim _ mas nada que nos leve a temer uma fogueira, ou um caldeirão. Foi em A metamorfose, sua estupenda novela, que Frans Kafka nos convenceu, de vez, que, mesmo quando acordamos transformados em uma nojenta barata, temos que saber o que fazer com isso. Viver é ir em frente. A arte é fazer, seja do que for, arte.
         A arte de Vitória Basaia reproduz o assombro humano. É arte do desassossego, mas também arte da aceitação. Arte que não renega, ou camufla o real, mas que faz dele o próprio mistério. É sobre a vida, sempre, que Vitória se debruça, sem preconceitos e sem certezas, guiada unicamente pelo espanto. (FIM)       

Nenhum comentário:

Postar um comentário