quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A Casa Basaia

A Casa Basaia




Ludmila Brandão[1]



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Meu ateliê é uma extensão da minha cabeça, guarda meus recursos, instrumentos, anotações visuais, tudo o que é alimento para minha imaginação e resíduo de meus projetos. (Regina Silveira).
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Meu ateliê é um lugar fora da vida cotidiana, é um estado de suspensão. É um espaço específico onde produzo os trabalhos, faço os projetos, escrevo ou recebo pessoas. É o meu duplo, a expansão da minha cabeça, é a amplificação de um estado mental. Tem mais a ver com a fermentação das idéias, a formulação de projetos, do que com a execução técnica, já que muitos trabalhos meus são realizados fora, pois são muito grandes (Carmela Gross).
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Gosto de guardar em meu ateliê objetos curiosos, abandonados, descartados; essas coisas significam para mim um renascimento, uma segunda chance, o ato de fazer com que existam de novo (Rochelle Costi).
(...)
O meu ateliê é como um polvo com os seus tentáculos que vão invadindo tudo. Eu tenho uma cesta cheia de santos barrocos que estão de quarentena no momento. Enjoei deles, deixei aí um pouco e depois decido o que fazer com eles. (...) Tem coisas que faço que não vendo para ninguém, nem mesmo exponho para não haver possibilidade de me afastar delas, por exemplo uma obra que se chama ‘Baixada Fluminense’, que tem três caixinhas com desenho de caveiras que ao serem sacudidas, gemem (Lygia Pape) [2].

Tenho um apreço especial por casas. Casas que se constituem como territórios existenciais humanos. Não estou falando dos espaços protegidos, seguros − que as publicidades de condomínio (cada vez mais fechados) prometem −, nem tão pouco da propriedade adquirida em 300 parcelas convertida em todo o seu patrimônio. Casas-território se definem por outros critérios e valores. Da ordem do expressivo. São espaços necessariamente singulares nos quais as pessoas, que ali fazem morada, têm um encontro especial. De natureza íntima. Tem gente que precisa de muito pouco, às vezes, apenas uma poltrona que roubou as curvas de seu corpo. Nesse encontro, os elementos de ambos produzem zonas de sombreamento mútuo nas quais é impossível discernir o humano do não-humano, o objetivo do subjetivo, a matéria da subjetividade, a realidade da imaginação.

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 Terra é a cor. Plástico, a matéria da qual é feito esse mundo, ainda que ele contenha barros, metais, isopores, sementes, fibras e pigmentos. Na sucessão das obras que começamos a ver desde a fachada da casa até o muro do fundo do quintal, passando por espaços amplos, outros exíguos, de onde explodem, escorrem, vazam peças de todos os tamanhos e mais variadas formas/materiais, descobrimos uma outra obra, maior, inapreensível, irrequieta, a própria casa, a casa Basaia, aquela que abriga, rebate ou compõe o universo fantástico de Vitória Basaia, artista.
De saída, haveremos de lidar com a natureza inclassificável desse espaço: Museu? Galeria? Ateliê de artista? Casa? Obra plástica? Ainda que persiga a especialização convencional da casa ocidental moderna, com salas, quartos, copa-cozinha, banheiros, varandas, depósitos, jardins, percebemos o esforço do gesto que, em cada canto, quer inventar um modo próprio de ser espaço, de ser quarto, cozinha, banheiro. De ser um lugar, singular.
É aqui que compreendemos o projeto poético de Vitória Basaia. Diferentemente de artistas que recortam no mundo algo para ser explorado − uma matéria, um problema, um conceito, um delírio, um desejo, etc. −, Basaia está entre aqueles que se lançam no projeto de inventar mundo, do começo ao fim. Como máquina de criar universo (o único paralelo que temos é o divino), concebe seus elementos, forja criaturas, constrói-lhes moradas e, ao fim de tudo, sopra-lhes no rosto, instintos e narrativas.
Um estudioso das religiões, Mircea Eliade, diz que todas as cosmogonias se organizam a partir da instalação de um centro, que pode ser uma cidade (Jerusalém, Meca), um lugar especial − que inspire epifanias − (o mirante da Chapada, por exemplo), um templo ou, simplesmente, um mastro fundador (a pilastra principal do circo e seu mundo imaginário). De certo modo, todas as nossas casas configuram um centro de mundo, mas poucas desdobram, efetivamente, uma ordem singular que se sobrepõe ao mundo (real?) e, como um polvo, avança sobre tudo, como nos diz Lygia Pape de seu ateliê. É máquina porque, dado o ponto de partida − o princípio da cosmogonia −, a replicação se incumbe do resto.
O infinito começa ali.
Mas, como todo rizoma, nesse mundo se entra por qualquer orifício: seja aquele das dezenas de minúsculas madonas de castanha, das barbies descabeçadas e pequeninas bonecas de plástico, aos totens portentosos, às misteriosas criaturas das matas imaginárias. O que Vitória faz é dar materialidade a esse universo onírico que ela constrói dia a dia, sem folga, como quem tece sua própria existência. Ao mesmo tempo em que tece/inventa, organiza seqüências criativas que dialogam entre si − a natureza e as criaturas; as criaturas e as narrativas; os objetos sagrados e as gêneses, etc. −, sugere sentidos possíveis que se oferecem à nossa imaginação, como esses que agora me ocorrem:
Criaturas − desde as obras mais antigas, as pinturas em papel, figuras estranhas povoam esse universo. Formas que lembram tartarugas, alevinos, gatos estrábicos, fetos, enfim, animais os mais bizarros a fitar-nos humanamente. Há um cheiro de placenta nessas obras. Tenho a impressão que, nos últimos tempos, esses seres saltaram dos papéis, das telas e ganharam corpo, viraram madonas, bonecas, formas femininas escandidas do corpo referente. Confesso aqui o meu absoluto encantamento. Causam-me espanto, rubor e, porque não dizer, compaixão, as bonecas-de-meia reduzidas a seios, coxas, boca e vulva. Uma única linha vermelha mal-costurada assinala o sexo sobrecodificado: o suficiente para fazer-nos pensar se esse é de fato um outro mundo ou se é o nosso mesmo, monstruoso mundo.
Natureza − se nosso esforço histórico tem sido o de naturalizar toda a tralha técnica que inventamos, em sentido contrário, a natureza do mundo Basaia nasce do artifício. O quintal − laboratório para suas criações nesse campo − reúne a curiosos objetos de lata, plástico, cerâmica, vidro, árvores, arbustos e folhagens, como se entre eles não existisse um abismo de natureza, dando origem a uma inusitada paisagem cibernética em que uma catraca nasce, a esmo, do solo e o boneco Michelin repousa entre os galhos do arvoredo como fruto à beira da decomposição.
Em outra categoria de elementos desse universo, encontramos alguns ensaios topográficos. São peças que exploram/inventam topografias como as tetas pontudas (ou pequenos vulcões) produzidas com espinhos de árvore ou os planos de abóbadas dos acondicionadores de ovos e frutas. Sobrevém aqui o desejo de tocar, de pisar, de experimentar, se fosse possível, um terreno assim.
Objetos − em suma, tratam-se aqui, quase sempre de objetos. Deles se constitui grande parte das obras de Vitória Basaia. Mas pode-se dizer que enquanto há objetos que se fazem paisagem e outros nos quais vicejam criaturas, há aqueles objetos “objetos”.  E, em meio à imensa variedade deles, destacam-se objetos sagrados e objetos eróticos, que às vezes superpõem-se, despudoradamente, incisivamente. O sexo e a devoção se encontram no êxtase, assim como o prazer e a dor. Por isso mesmo, os objetos “objetos” − mediadores como são entre homens e narrativas − nos inspiram religioso (ligação) respeito ao mesmo tempo em que convidam à experiência mística que a carne, e somente ela, torna efetiva.
Criar, criar, criar. A máquina Basaia, a certa altura, quando o universo está todo delineado, composto, em funcionamento, pergunta-se: afinal, do que somos (as suas criaturas) feitos? Parece-me ser essa a questão que envolve uma última série de obras de Vitória, talvez, a mais enigmática, que este texto quer destacar.
Plástico − Avessa a dar nomes às suas peças, Vitória nomeou esse conjunto (para distingui-lo em meio à profusão de outros) de “trabalhos com lança-chamas”. São peças submetidas ao fogo. Como se uma catástrofe tivesse abatido sobre seu mundo e reduzido tudo − a natureza, as criaturas, os objetos − a um resíduo material, único denominador comum, àquilo do qual somos todos feitos: plástico e nada mais. Como matéria, sabemos que os polímeros foram forjados em laboratório, para a felicidade da vida moderna, feitos para durar eternamente (o que não é, necessariamente, uma virtude). Como propriedade, é aquela de que se vale a arte: a docilidade da matéria subordinada à imaginação. Como qualidade, é a possibilidade de sermos qualquer coisa.
Quando somos crianças, brincamos imitando o mundo dos adultos. Simulamos o futuro em que seremos homens, mulheres, pais, amantes, médicos, professoras, etc. Um dia, deixamos de simular o futuro para viver a vida que o mundo nos oferece. Na maioria das vezes, essa passagem significa o abandono da imaginação, ou a imaginação subordinada à matéria do mundo. Ficamos pobres. Felizmente, alguns, que chamamos artistas, ignoram o imperativo e operam outra passagem, radicalizando a inocente brincadeira de boneca. Ao invés de simularem um mundo futuro, inventam, como Vitória, um mundo outro, presente, à mão, totalmente novo, para o delírio de nossas vidas tristes. 


[1] Arquiteta e historiadora, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP com pós-doutorado em Crítica da Cultura pela Université d’Ottawa/Canadá. É professora do Departamento de Artes, do Mestrado em Estudos de Linguagem, do Mestrado em História da UFMT e coordena o Núcleo de Estudos do Contemporâneo (CNPq/UFMT). Entre outros textos, publicou o livro A casa subjetiva: matérias, afectos e espaços domésticos (São Paulo, Perspectiva, 2003).
[2] Excertos da reportagem Casa dos Artistas, de Caio Caramico Soares, Folha de São Paulo, Mais!, 23 de dezembro de 2001.