quinta-feira, 17 de março de 2011

Universo Inquieto

Criar é sempre uma possibilidade

José Serafim Bertoloto[1]
Curador da Mostra

       Vitória Basaia é uma artista que não nasceu em Mato Grosso, mas a sua integração participativa dá se, de forma tal, que em momento nenhum a consideramos estrangeira. Com a sua irreverente performance, roupas longas e tiaras na cabeça, ela vai chegando de mansinho - como quem não quer nada - nos lugares, nas reuniões e, quando menos se espera, lá está ela dando o seu palpite, o seu recado. Ela, que já exerceu as funções de jornalista, infiltrou-se no movimento sócio-cultural, participando com idéias, sugerindo reformas, propondo debates, viabilizando confrontos e ajudando a descobrir formulas e novos talentos. Já há alguns anos, mais acomodada, transformou sua casa, na cidade de Várzea Grande, em um verdadeiro “museu”, ou seja, um verdadeiro gabinete de curiosidades, com obras espalhadas por todos os lados. Algumas paredes receberam interferências na construção do reboco, criando verdadeiros cenários, as portas transformaram-se em suportes para pinturas e as colunas de madeira viraram esculturas. O jardim/quintal da casa tem peças que estão na conformação dos bancos, nas aberturas das paredes, grudadas às árvores, no gramado e na parte superior dos muros. Os demais cômodos da casa estão abarrotados de desenhos, pinturas e objetos, que foram transformados ou simplesmente apropriados e eleitos à condição de arte. Na casa nada escapa à sua interferência, que vai desde os tapetes, os sofás, os móveis da cozinha - geladeira, armário, fogão – demais utensílios e até os lustres. Em tudo tem o sabor, o odor, o bolor Basaia. Seu modus vivendi está impregnado pelas mais recônditas arestas. Sua casa é seu ninho, seu primeiro universo, no sentido [2]bachelarniano, pois, “todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa (...) o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo (...) todos os refúgios, todos os aposentos têm valores oníricos consoantes (...) a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz”.
       Vitória dificilmente utiliza o pincel, seus trabalhos sempre são produzidos diretamente com as mãos. No inicio da carreira ela confeccionava o seu material produtivo a partir de terra, plantas, resinas e ceras coletadas na região de Chapada dos Guimarães, acrescido das outras regiões do Estado, que visitou, para ministrar cursos e oficinas. Os materiais reciclados têm ocupado com mais força a rotina fatigante do seu cotidiano ordineiro, como também tem feito parte do seu universo de produção, principalmente nas intervenções públicas, na criação de grandes painéis ou na construção coletiva de presépios públicos e em outras atividades realizadas com meninos de rua. Este exaustivo e farto exercício de pesquisa e de construção material atrelado às varias informações teóricas assimiladas por intermédio das leituras no seu devir, lhe confere o domínio autodidata da arte-educação.

Arte e natureza

       Essa vivência pessoal, da artista, que faz da criação a afirmação da própria vida, redescobrindo possibilidades do ser, numa busca incessante que visa possibilitar reflexões e novas discussões, como uma forma de olhar, de dentro para fora, no sentido de ampliar e dar visibilidade aos conhecimentos adquiridos. Reconhece as possibilidades expressivas dos materiais e dos suportes artísticos por intermédio da prática e da experimentação, com o intuito de levantar questionamento sobre os sistemas oficiais do fazer artístico, numa busca que ocorre tanto na pesquisa como na produção de idéias, para a ocupação de espaços da arte e dos artistas. Com esta meta, num esquema paralelo e alternativo, com custos baixos para sua produção, interagindo e ampliando a polêmica sobre o meio ambiente e a sua função comunicativa, dando ênfase aos aspectos ecológicos e de interação homem/arte/natureza, ela abriu sua casa/ateliê ao grande público, que pelo fato de constar do Guia Quatro Rodas, a mesma, é visitada por gente de vários países e, infelizmente, quase desconhecida por pessoas da nossa região.
       Conheço Basaia desde inícios dos anos noventa e nesses dezesseis anos pude acompanhar o desenvolvimento de sua produção, orientando, dialogando, sugerindo e aprendendo com o seu amadurecimento plástico. Há alguns anos atrás, em visita à sua casa, como especialista em museu de arte, pude constatar que a artista, no afã de produzir e de expor suas obras, estava perdendo parte de sua extensiva produção, por falta de acondicionamento apropriado, de registro fotográfico/filmítico e catalográfico das mesmas. Algo esta sendo feito para garantir a sobrevivência dessas, em imagens digitalizadas, pelo menos a sua permanência enquanto tal, já que as obras podem se perder no infortúnio do tempo.

Projeto Curatorial

       Vitória seria a única artista mato-grossense, dentro da sua tendência, uma das poucas ainda vivas no país, a produzir arte bruta (por seu espírito contraditório e pela rudeza da materialidade). Esta característica impar dentro das artes plásticas brasileira, não pode ser deixada a perder, nesse sentido, foi criada, por intermédio do Fundo de Apoio à Cultura do Estado de Mato Grosso, condições para que a artista tenha sua trajetória produtiva registrada em vídeo e nesse livro iconográfico, que possibilitará a divulgação nacional e internacional de sua vida e obra, para pesquisadores e interessados na arte mato-grossense, tornando acessível a fruição de seus trabalhos à todos, numa estratégia de democratização da probabilidade dessa experiência estética.
       Com a realização do levantamento de grande parte de sua produção, numa preocupação de interatividade, o vídeo documentário e este livro, poderão apresentar obras que retratem não mimeticamente a natureza, mas sim todos os entrelaçamentos que decorrem dela e que para ela canalizem. No imbricamento dessa malha iconográfica irão surgir, contos, lendas, mitos e crendices ligados à natureza, como também, o trabalho do homem, suas causas e conseqüências sociais. Objetos que permitam gerar intelecção reflexiva da tessitura estética, política e social da artista, no ato de criação.
       A artista que em algum momento trabalhou de forma intimista canalizando todas as energias a construir um mundo muito particular, criando formas hibridas, seres imaginários, paisagens ímpares de influências diversas e de contextos contraditórios, passa por uma transformação no sentido de desmaterializar as formas construtivas encontradas, é como se a artista buscasse destruir o mundo até então construído e buscar a essência dessa matéria que o construiu. Dá-nos a impressão, que num ato de incensastes mórbida Basaia, como uma alquimista, bruxa ou deusa, não mais se realiza ao construir novos mundos imaginários, mas agora tenta destruí-los em busca de suas origens, na liquefação da matéria. Ao reduzir a aglomeração de materiais diferentes em uma pasta amorfa e disforme, vai de encontro o seu mais recôndito ser, o nirvana, num reportasse-se às suas entranhas ulteriores a essa vida mundana.

A boneca Barbie

        Em sua ultima exposição individual “cosmogonia” a artista tenta polemizar o papel da mulher na vida contemporânea, seus conflitos em busca de liberdade e a opressão sofrida pela sociedade machista, apresentados nas suas bonecas de pano engessadas, amordaçadas, enclausuradas e sufocadas por redomas transparentes, que lhes permitiam ver o mundo, porém sem ter mobilidade de transitarem livremente por ele, ou ate mesmo interferirem nos seus predestinados, destinos.
        A boneca Barbie, exemplo da beleza feminina, que acompanha a vida das mulheres a mais de quarenta anos, foi uma iconografia utilizada no sentido de trazer à tona a discussão da beleza idealizada, desde o classicismo até a atualidade, transformando a estética feminina numa ditadura da magreza, esquelética e ariana. Vitória sentiu na pele esses desejos introjetados no seu cotidiano de criança, como todas as de sua geração, que sofreram e vêm sofrendo até então. Numa ânsia de raiva destrói a boneca, coloca as suas partes em recipientes separados, aglomera as suas cabeças em vidros hermeticamente fechados, cola as suas partes e a massifica sobre placas mães de computadores, dá lhes novas funções e roupagens, vulgariza a sua magia em réplicas do cotidiano mais ordinário possível. Ao trancafiá-las, em armarinhos de banheiros, ao lado de outros acessórios ignóbeis, a artista não só ridiculariza o seu material made in chine, dos um real e noventa e nove centavos, espalhados por todo o território nacional, como também discute e desloca a sua fragilidade para a da mulher, que se perdeu em essência, nesse afã de fêmea fatal, aprisionada nesse hábito convencional e simbólico do mundo capitalista. Na exposição, a boneca é desapropriada de suas vestes originais, que nua se mistura a outras, feitas de pano, que juntas vão satisfazer os desejos eloqüentes, de um publico ávido em lhe possuir por alguns instantes, modificá-las, dar lhes novas vestimentas e maquilagem, socializá-las, gerar agrupamentos e reproduzi-las em um recuerdo, na maquina de xerocar. O resultado da produção interativa, dos espectadores artistas, era afixado em um mural ou em varais para futuras manipulações, depois foi transformado em um caderno, para novas reflexões da própria artista. Parte das bonecas de pano que compunham a exposição haviam sofrido a interferência da artista, que além de transformá-las em andróides, dá lhes formatos bizarros, engessando e costurando-as umas às outras, coloca nas espremidas em molduras e usa seus corpos como suporte para poemas e textos diversos, de sua digressão. Vide o exemplo:
“O dia engole a noite. A noite engole o dia e o cotidiano vai ficando buchudo, inflado de vazios”.
       As bonequinhas de plástico também renderam muitas outras obras, além de telas usado, em seus armarinhos de banheiros ou em frigideiras e torradeiras, numa discussão do sagrado e do profano a artista as adere em discos lasers descartáveis juntamente com restos de computadores e transistores de TV e rádio, enleadas por uma película de látex avermelhada que lhes dá um aspecto placentário e nojento, ao mesmo tempo em que sugere a morte da nossa liberdade, nesse emaranhado tecnológico e da falsificação, propõe uma redenção às várias possibilidades de recursos que ela nos possibilita.
       Este conjunto de obras exacerba o conflito dual de nossas existências como o bem e mau, o belo e o feio, o rígido e mole, arte e não arte. A presença de imagens iconográficas do cristianismo, entremeada a esta parafernália dantesca, dá ao objeto um aspecto de sarcófagos ou criptas, que são reforçados pela cor preta, no fundo da caixa “funeral” envidraçada, do suporte elegido para completar a obra. Ao observarmos a obra nosso rosto refletido se mistura as imagens criando um cenário surreal e insólito, gerando certo desequilíbrio emocional, um conflito.
       Suas quase mulheres; feitas de meia calça recheadas com mantas de poliéster; são formas arredondadas e retorcidas que nos possibilitam visualizar corpos humanos compactos, oprimidos e disformes. A artista possibilita uma envergadura e flexibilidades aos corpos que dificilmente se consegue na vida real. Ela distorce as formas humanas, agiganta as bocas, transforma-as em vaginas, valoriza alguns aspectos e suprimem outros, na intenção da representação da fêmea oprimida, novamente aqui, enclausuradas em redomas de vidro. Esse aspecto angustiante das imagens geradas não inibe as nossas percepções mnemônicas, nem mesmo os nossos desejos eidéticos, mas cria uma receptividade, hilária, eloqüente, mórbida e mordaz.

Nichos e Caixas

        Em outras caixas vitórias idealizou santos feitos de bucha natural e outros produtos de origem vegetal, tipo vagens, capins, sementes e cipós, que contrariamente ao conjunto anteriormente citado, agrada em muito nosso olhar. Remete-nos aos santos barrocos, imagens iconográficas, signos visuais, que olho já acostumado a vislumbrar pelo hábito, só trás prazeres sem nenhum estranhamento ou incomodo. As imagens construídas, sobre papel artesanal, mantêm as cores claras dos produtos naturais, criando nichos sacralizados harmônicos de volumetria bastante interessante, enriquecidos por pequenos detalhes de pinturas que completam os adereços da figura idealizada.
        O sagrado vem sendo explorado a muito, nas suas santas engarrafadas, nas petes descartadas e retorcidas pelo fogo, nas latinhas recortadas e coladas, formando santas e santos em oratórios de madeiras. Sua presença também é visualizada, em imagens pintadas, nos recortes projetados das janelas, nas pranchas de papeis reciclados e resinas, que imitam as taipas, das paredes das casas antigas, da população pobre, da região ribeirinha.

Desenhos

        Basaia desenha constantemente, entre uma série de objetos e outros afazeres artísticos, sempre volta para eles. Os desenhos são feitos à mão, utilizando pigmentos de terra socada, triturada ou algumas vezes giz pastel artesanal, que sobre o papel vão construindo manchas coloridas que se transformam em seres metamorfoseados, bichos homens/homens bichos, uma antropomorfia desenfreada que dá margens a umas centenas de obras. Sua construção pictórica não tem o sentido narrativo ou literário, mas condensa indiciais que se reportam aos seres primitivos terrestres, seres míticos do imaginário coletivo, personagens oriundos da agregação de vários animais terrestres, com fortes influências aquáticas. A cobra o jacaré e a tartaruga são elementos renitentes em sua obra, o peixe e o girino vêm sempre entrelaçados ou consorciados a outras imagens com caracteres rupestres. Os felinos já privilegiaram uma de suas fases, pequenos formatos em tiras, de mulheres gatos em situações inusitadas. Esses trabalhos densos de colorido impar exalta o lado fêmea da mulher, sua sensualidade e eloqüência. Características que aparecem em outros desenhos, onde mulheres se insinuam sobre felinos quando não os estão usando em forma de estola, da mesma forma que jacarés e serpentes, em adereços de pescoço.

Arqueologia da morbidez

       Se intitulando como arqueóloga urbana a artista leva mão a tudo que lhe atrai o olhar, recolhe para o ateliê os mais diversificados objetos encontrados nas suas incursões pela redondeza onde mora, nos trajetos corriqueiros, nas visitas em lojas de materiais de construção e de demolição. Tintas vencidas, móveis velhos, pedaços de madeira, concreto, plástico, metal, estantes expositoras de lojas, enfim, objetos descartáveis jogados fora no lixo, que se transformam em projetos artísticos conceituais, ou simplesmente em objetos escultoricos retorcidos, queimados, amalgamados, que nos causam certo estranhamento, um frison, um incomodo, um deslocamento da percepção primeira, uma angustia ou risadas pelo humor mórbido ou uma alegria causada pelo inusitado, pelo novo. Nesse seu desespero de recolher “coisas” coloca seus três filhos e o marido em situações complicadas e divertidas, obrigando-os a desfilarem com esses objetos nos lugares públicos mais diversos possíveis, chamando a atenção de todos os transeuntes que por eles passam ou o cercam, para fazer perguntas indiscretas ou torcerem o nariz. Recordo-me de um fato, ocorrido no ultimo Salão Jovem Arte Mato-grossense, quando seu marido e filho, adentravam ao recinto com suas obras, umas peças de plásticos derretidos, isopor e resina, que tinham a aparência de pedaços de ossos com carne e gordura, causando asco nas pessoas que se encontravam pelo caminho, obrigando-as a cortarem volta, para não passarem perto “daquela coisa” monstruosa, nojenta. A artista ao saber do ocorrido, gargalhava felicíssima, por atingir seu objetivo, provocar o efeito desejado.

[1] Artista plástico e historiador, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, mestre em Artes pela Escola de Comunicação e Artes da USP/SP, especialista em Estudos em Museu de Arte pelo MAC/USP. Professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Cuiabá, Pesquisador e Curador do Museu de Arte e de Cultura Popular da UFMT. Participou como júri em vários Salões de Artes e com uma grande produção de textos críticos sobre a produção iconográfica mato-grossense.[2] Gaston Bachelard, A poética do espaço. trad. de Antonio de Pádua Danesi,. Matins Fontes, 2000 p. 25

quarta-feira, 16 de março de 2011

Texto José Castello


Vitória Basaia
Para suportar o enigma


 José Castello

         A arte de Vitória Basaia acolhe a estranheza, o pulsar secreto do mundo, sem a ilusão de barrar ou, ao contrário, de ceder mansamente, ao que eles guardam de enigmático. O mundo é espantoso, a realidade se interpõe como uma parede a bloquear nosso acesso à verdade e à certeza. E nesse caso a arte _ ao menos a arte pulsante como a de Vitória _ surge como possibilidade de compaixão e de mediação.
         Bichos e homens, envoltos em segredos e dissolvidos na grande borra da vida, se igualam num mesmo ponto: a perplexidade diante do real. Não há muita diferença entre o cão que se assusta diante de uma sombra e o homem que se encolhe quando confrontado com o desconhecido. Ambos provam o enigma, ambos tremem diante dele, e na obra de Vitória Basaia esse tremor os  iguala.
         Daí a ausência de limites entre real e invenção com que ela trabalha. Daí também os materiais mais inesperados, retirados do cotidiano e transformados em ouro, que Vitória _ como uma bruxa das artes _ trata de deformar e de metamorfosear.
         “Enquanto a ciência nos traz segurança, a arte está concebida para nos intranqüilizar”, disse Georges Braque. Por isso, o método de Braque era a decomposição: de imagens, de clichês, de procedimentos consagrados, de modelos. Daí seu interesse pelos personagens simplificados _ quase primitivos _ mas também muito deformados. E o choque que a pintura de Braque até hoje provoca.
         Vitória Basaia está muito distante de Braque, pois trabalha sobre outra tradição, vem de outro mundo; mas seu interesse em decompor e recompor a realidade, em nela interferir e depois se distanciar é muito semelhante. De todo modo, observamos os seres misteriosos de Vitória e podemos pensar em uma tela de Braque como o “Grande nu”, guardada no Centre Pompidou, em Paris. A aparência primitiva é a mesma. O esforço para se limitar ao essencial e ao mais antigo, também. O gosto solar, a falta de medo do infantil, a liberdade extrema de quem faz o que quer.
         Os personagens dos desenhos e pinturas de Vitória Basaia são seres limítrofes, a meio caminho entre o homem e o bicho. São pontes lançadas sobre um abismo. Se já temos dificuldades para aceitar, mesmo depois de Darwin, que viemos de um bicho _ o macaco _ e não do sopro de deus, mais dificuldades ainda temos para acolher a obra de Vitória, na qual o homem faz o movimento inverso, isto é, em vez de continuar a vir do bicho, se dirige de volta a ele, e nesse retorno, em vez de regredir, cresce ainda mais.
         Vitória se inspira nos personagens assombrosos das fendas e das grotas dos chapadões. É nesses desvãos, nessas paisagens muito estreitas, que sobrevivem esses seres intermediários _ que resiste a possibilidade humana de criação e de superação. São seres que tendem ao mito e à fantasia, seres a meio caminho entre uma coisa e outra, híbridos e inconstantes, quer dizer, vivos. Não os seres inertes da arte consagrada, e sim os seres móveis, soltos entre um instante e outro, da arte sagrada.
         Interpostos entre a limitação do que é e a impossibilidade do que não é, eles se sustentam como representantes da vida, que é sempre processo e superação, corrida desenfreada e luta, para terminar inevitavelmente na morte. Ou seja: na anulação do que é. Dessa condição paradoxal nasce a beleza dos trabalhos de Vitória. É dessa posição limítrofe, a meio caminho entre a terra e os céus, entre o que é e o que não é, que se impõe o mito da Vitória “bruxa” _ pois ela também não deixa de mexer em forças que não pode controlar, forças que a submetem e que, ainda assim, ela insiste em tentar vencer.
         Entre o mundo de hoje e a poeira dos arquétipos, entre as experiências futuristas e o arcaico, ela se move como uma simples artesã, discreta, persistente, fiel. Sua casa em Várzea Grande, MT, ela também um ambiente híbrido entre a residência e o ateliê, entre o fazer e o ser, confirma essa dupla posição de Vitória. Aceitar, mas resistir. Retornar, mas avançar. Ser, mas não ser. Criar, mas a partir do que já é.
         Alguns, insistindo na imagem da bruxa, chegam a dizer que aquilo que Vitória Basaia faz não é arte, mas alquimia. De Clarice Lispector se dizia a mesma coisa: que não se tratava de literatura, mas de bruxaria. Convidada a falar em um Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, Clarice se limitou a ler “O ovo e a galinha”, um de seus contos mais enigmáticos. E mais nada disse. Se fosse convidada também, Vitória por certo se limitaria a exibir alguma de suas obras perturbadoras, e ficaria quieta a um canto.
         Essa ascendência da obra, que se impõe sobre seu criador, que o supera e o sujeita, é uma marca dos grandes artistas. Justamente porque habita essa zona intermediária _ e com isso se afasta da festança das galerias, do mercado de arte, do colunismo social _ Vitória Basaia parece lidar com elementos que não fazem parte da vida comum e, até mesmo, que são estranhos à arte. Parece lidar com elementos “superiores”, ou transcendentes, parece estar nas nuvens.
         De fato, quando ela transforma mouses de computadores em camundongos, ou quando faz do isopor, um pedaço de carne sangrenta, é com a técnica da metamorfose que lida. Ela parte, cada vez mais, de materiais estranhos e improváveis, de “inutildades” como diria o poeta mato-grossense (do sul) Manoel de Barros. Mas é no “inútil”, no desprezível, no lixo, que Vitoria acessa o pulsar da vida.
         E nessa pulsação, ela toca em elementos fundamentais como o inconsciente _ a que o preconceito costuma encobrir, também, com a alcunha de misticismo. A cada mudança que realiza na ordem normal da vida, a cada puxão que dá no tapete de serenidade sobre o qual nos sustentamos, é todo um mundo de valores que Vitória desloca e inverte. Suas esculturas, em vez de decorar, perturbam. Seus símbolos, em vez de significar, interrogam. Quando trata de desenhar elementos vivos, ela os exacerba, ou mesmo enlouquece, repuxando a vida a seus limites e a tornando estranha e imporvável.
         Zona tida como de eventos místicos e de aparições, a Chapada dos Guimarães é o solo ideal para a arte de Vitória Basaia. Mas que não se espere de sua arte fórmulas esotéricas, ou sortilégios mágicos. Sua arte seduz, mas também choca. É do impacto que produz sobre quem a observa, ao contrário, que ela tira sua sedução. Arte de perguntas, ela repuxa as dimensões oficiais do mundo, alarga nossa visão cotidiana, antecipa ou anula variações prováveis, e faz da beleza, susto.
         Arte imantada no regional, não é, contudo, arte regionalista, ao contrário, é arte que explode nossas expectativas a respeito da cor local, da tradição primitiva e do “popular”. Se ela nos provoca com o inusitado e até o absurdo, não é pelo prazer da provocação, mas sim para relativizar nossas certezas e para colocar o desconhecimento, e mesmo o enigma, no lugar do saber.
         Somos sujeitos do desconhecimento _ o que podemos ver, tudo o que podemos ver, como já disse um psicanalista, é só um brevíssimo facho de luz. Mais nada. Nesse caso, é bom não ter tantas certezas. É com essa desconfiança, boa desconfiança, que Vitoria Basaia trabalha. Não custa ver de outra maneira, não custa observar de outra posição, não custa mudar de lugar. Não custa duvidar e rever mais uma vez, como se nunca tivéssemos visto. 
         “A arte é uma mentira que nos leva a captar a verdade”, disse Pablo Picasso. “O artista tem que convencer os outros da veracidade de suas mentiras”. Mentira, ou novas perspectivas, novas maneiras de desconfiar e de observar? “Na realidade, a arte é uma forma de encantamento”, disse Goerges Braque _ e as idéias de Braque e de Picasso, somadas, nos ajudam a chegar um pouco mais perto de Vitória e a acolher a riqueza de sua arte.
         Mistérios? Sim _ mas nada que seja da conta do esoterismo, ou das religiões, ou das teologias. Transfigurações, metamorfoses, bruxarias? Sim _ mas nada que nos leve a temer uma fogueira, ou um caldeirão. Foi em A metamorfose, sua estupenda novela, que Frans Kafka nos convenceu, de vez, que, mesmo quando acordamos transformados em uma nojenta barata, temos que saber o que fazer com isso. Viver é ir em frente. A arte é fazer, seja do que for, arte.
         A arte de Vitória Basaia reproduz o assombro humano. É arte do desassossego, mas também arte da aceitação. Arte que não renega, ou camufla o real, mas que faz dele o próprio mistério. É sobre a vida, sempre, que Vitória se debruça, sem preconceitos e sem certezas, guiada unicamente pelo espanto. (FIM)